quinta-feira, 29 de janeiro de 2009

PORTUGAL DOS PEQUENINOS

A Medicina das corporações

Longe vão os tempos do João Semana, da Medicina romântica, caritativa e endeusada, apesar de fracos recursos e de eficácia limitada.

A pouco e pouco, à medida que a Medicina ia ganhando em conhecimentos e em eficácia, perdia muito do romantismo tão apregoado no século XIX e princípios de Século XX, com médicos e doentes muitas vezes a serem tratados como números, num grande aviário.

Mas à parte estes exageros de linguagem, a Medicina tornou-se cada vez mais exigente na aquisição e aplicação dos conhecimentos e também mais dependente, tanto no diagnóstico, como na terapêutica e no prognóstico, de outras Ciências como a Física, a Química, a Biologia, as Ciências Farmacêuticas, etc.

O ensino da Medicina foi, por essas e por outras circunstâncias, tornando-se mais complexo, mais difícil, mais exigente e aos alunos pediram-se cada vez mais qualidades, mais trabalho, mais tempo de estudo, melhor utilização prática dos conhecimentos adquiridos, etc.

Até aqui, tudo parece linear e mais ou menos consensual.

Os problemas começaram a surgir com as limitações e as reclamações das Faculdades de Medicina, a massificação dos cuidados de saúde às populações, a extensão e logo a generalização pública do Serviço Nacional de Saúde, de tal modo que a breve trecho começou a tornar-se notória a falta de médicos no nosso país. E a partir daqui, ao pedido de mais clínicos para o SNS respondiam as Faculdades com os seus limitativos numerus clausus, e a Ordem dos Médicos com as suas imposições, mais ou menos corporativas.

Apesar das justificações que sempre são apresentadas, algumas destas situações criadas têm, perante a opinião pública generalizada, o seu quê de exagero corporativo e de caricatura, como a exigência de altíssimos valores para a admissão dos alunos à Faculdade, fazendo supor que só os génios podem entrar na Medicina...ou os «marrões», com resultados nem sempre a condizer! Também a Ordem dos Médicos não fica isenta de alguns remoques da população, porque passa por vezes a ideia de que funciona mais como sindicato, deixando o juramento de Hipócrates para simples fachada.

Durante anos, foram esquecidas as soluções para estes problemas, até que se tornaram insustentáveis, obrigando à contratação de médicos estrangeiros, actualmente mais de 2800 a exercer em Portugal, estando mais de 700 alunos a cursar medicina em universidades estrangeiras, tudo isto com grandes custos para o erário público e as bolsa dos particulares, e sem que venha a terreiro uma explicação cabal, num esforço para tornar perceptível à população em geral, incrédula, uma razão clara e válida para estas aberrações.

Os utentes do S.N.S. agradecem a presença dos médicos estrangeiros, à falta dos nacionais, e até a subvenção de tratamentos em Espanha, Cuba, etc., mas a Ordem protesta sempre contra a usurpação de vagas, o perigo potencial das intervenções lá fora...Até a eventual utilização de médicos na reforma ou sem especialidade, em casos extremos, tem sido posta em causa, com base numa hipotética degradação dos Serviços!

Verdade seja dita que, de há alguns anos a esta parte, algum esforço tem sido feito no sentido de formar um número maior de médicos em Portugal, mas insuficiente, devido à difícil colmatagem de vagas deixadas pela reforma dos mais idosos e o número cada vez maior de atendimentos. O regresso de uns quantos médicos formados no exterior também poderá dar alguma ajuda.

A Ministra da Saúde, médica de profissão, teve a ideia peregrina de convidar os alunos matriculados no estrangeiro a ingressar nas universidades portuguesas, poupando provavelmente ao Estado e aos particulares a exportação de valores em época de crise, reduzindo as dificuldades e o esforço dos alunos que gostariam de regressar e até, possivelmente, a aceleração da finalização dos cursos, com vantagem para a saúde em geral.

Mas, no nosso Portugal dos Pequeninos, as coisas nunca são fáceis.

Ao aplauso dos alunos no estrangeiro, surgiram as reclamações violentas e corporativas. As Faculdades e os Hospitais disseram logo que não comportavam mais alunos. Os estudantes de Medicina acharam-se humilhados com a ultrapassagem provável pelos «estrangeiros» que tiveram dinheiro para cursar no exterior, depois de fracassar na média nacional exigida, e a Ordem reclamou igualmente contra essa «enorme injustiça social», etc.

Nenhum destes intervenientes veio a terreiro propor uma discussão honesta do assunto, apresentar razões ou propor soluções para os problemas que são de todos nós. Vieram imediatamente todos, muito à portuguesa, muito corporativamente, fazer as suas queixas e alarde dos seus problemas. Estão no seu direito.

O espantoso e anormal deste país, que já foi de grandes e esforçados homens, é que agora está à mercê de grandes valorizações de pequenos nadas, de pequenos interesses, onde o interesse geral pouco conta e o consenso apenas tem lugar sobre o pedido de aumento de ordenado ou de um subsídio. E, mesmo assim...

Pelo que, feitas as contas, muito possivelmente tudo ficará como dantes...quartel general em Abrantes!

É por essas e por outras, seja decidido avançar ou não com a ideia, que o comentário à notícia, pelos utentes da saúde, é já o mesmo de sempre:

-O Zé-Povinho que se lixe!

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