sábado, 31 de maio de 2008

CARTAS E MAIS CARTAS

De boas intenções está o mundo cheio

De vez em quando, lá vem nos jornais uma carta de alguém tomado pelo desânimo causado por uma crise qualquer, ou apenas pela suposição de que as coisas não estão a correr de acordo com a sua previsão ou o seu desejo, nunca na direcção certa. A carta aberta, o manifesto, o lançamento de um alerta à navegação ou às supremas autoridades está na moda...aliás está sempre na moda, em alturas de crise económica, pois quando tudo corre sobre rodas, nada disto existe.

Ora em Portugal, infelizmente, tudo isto existe, tudo isto é triste, tudo isto é fado. E o fado é fatal, como o destino! Dá para chorar, ter muitas saudades dos tempos idos cheios de uma felicidade indigente e alegre à distância, justificada por uma filosofia barata e duvidosa em que o dinheiro não traz felicidade...

Um amigo mandou-me ontem uma mensagem com a cópia duma carta aberta dessas, dirigida ao Presidente da República, com as lamúrias do costume e o pedido de intervenção deste, que o país já não é uma monarquia constitucional decorativa, mas uma república democrática com uma suprema autoridade que devia actuar, bem e depressa...

Ora, à primeira vista, a carta deste senhor advogado, cheia de lugares comuns, parece um tiro único e certeiro no alvo que é, segundo ele, o desgraçado panorama político-económico do país. Muito do que lá escreve é certo, efectivamente. Nem sequer discuto.
Mas...cartas destas são por aí aos montes. Cada português entretém-se a escrevê-las (quando sabe escrever!!!), mesmo sem ser advogado, e até muito mais directas e acutilantes que esta.
O facto é que, num país de advogados de palavra fácil e execuções difíceis e demoradas, treinados para discussões eternas e críticas a propósito ou a despropósito, mas encaixando perfeitamente numa Justiça pelas ruas da amargura, os problemas reais do país serão sempre muito mais complicados de resolver do que deveriam sê-lo, porque as novas tecnologias não se compadecem com floreados de retórica fácil e exigem acções.

Nas nossas universidades e politécnicos ainda é enorme a quantidade de letrados e advogados a estudar para o canudo, em vez de matemáticos, físicos, biólogos...ou até canalizadores e electricistas! E provável ou infelizmente, só um governo ditatorial seria capaz de inverter rapidamente esta situação, tão entranhada está na nossa sociedade. Mas foi assim que aconteceu, por exemplo, na Alemanha de Hitler e nos países comunistas de leste, todos casos célebres pela má memória que nos deixaram.
Cartas destas, além disso, não ajudam ninguém. Não alertam sequer o presidente que
está farto de ler e ouvir tais coisas, sem saber ou poder dar-lhes resposta; não comovem os governos que lutam desesperadamente para tentar corrigir o que anda mal, umas vezes com sucesso, outras vezes, não; não convencem os cidadãos que continuam a comer a sopa dos pobres, enquanto ao lado os restantes vão curtir às discotecas, ao Rock in Rio, ou aos casinos, sem se importar um pepino que o país se afunde ou não.
Na realidade, a cura dos nossos males está em nós mesmos, que julgamos tudo saber mas nada fazemos, na nossa falta de civismo e de esforço, na nossa mania de atirar a culpa aos outros -governos, instituições, autarquias, empresas, escolas, patrões ou empregados, etc., etc., sempre que tentam fazer algo, e os denegrimos até à saciedade... enquanto não conseguimos espreitar o furo e agarrar o tacho, o único objectivo fixo sem lugar a discussões académicas.

É assim este paraíso à beira-mar plantado... como já Camões sabiamente cantava nos Lusíadas, antevendo o desencanto do interior, quem sabe até a sua desertificação de que tanto nos admiramos agora, quinhentos anos depois...
Ocorre-me sempre, nestas alturas, lembrar a lição de trabalho persistente e profícuo dos países que passaram pela guerras de 36-39 e de 39-45, única forma de obter o desenvolvimento florescente que hoje possuem, porque a necessidade obriga...e de que maneira! Trabalho inteligente e continuado, em países de meteorologia hostil, sem cartas e mais cartas, sem conversa fiada.
Mas enquanto tivermos sol para bronzear-nos e estivermos inundados, sujeitos e influenciados por um enxame de letrados sábios, petulantes, pretensiosos, experientes em malabarismos burocráticos inúteis e ignorantes das soluções práticas necessárias, nunca iremos longe, por mais cartas que eles se entretenham a escrever. Mesmo que o façam com boa intenção, que de boas intenções está o mundo cheio.

sexta-feira, 30 de maio de 2008

PETRÓLEO E CRISE-II

Os remédios que tardam

O preço do petróleo continua a subir, os consumidores continuam a pagar mais pelos combustíveis que usam mas, pior que isto, a subida de preço dos bens alimentares vem causando um mal-estar cada vez mais acentuado entre as gentes de menos recursos, no mundo inteiro, apesar de uma parte da população europeia ainda não se ter apercebido, no meio da abundância em que foi criada, da magnitude da dificuldade.

Não vai ser fácil resolver este grande problema, mesmo na Europa dos maiores recursos.

As pessoas ainda esperam pelo fim de uma crise passageira, sem se preocuparam com as grandes incógnitas em que urge ocupar o pensamento, antes que seja tarde demais. A primeira é o fim, mais ou menos anunciado, da era dos combustíveis fósseis e a sua substituição, a sério, por outras soluções mais eficazes, mais baratas e, se possível, ainda mais universais. A outra é a necessidade cada vez mais imperiosa da implementação da auto-suficiência alimentar de populações cada vez mais numerosas e mais dependentes, na economia global que tudo vai abrangendo, inexoravelmente.

Os grandes interesses imediatos das grandes empresas petrolíferas e das poderosas indústrias adjacentes tornam difíceis e lentas as intervenções dos governos, no que toca à ultrapassagem da dependência dos combustíveis fósseis e das indústrias petroquímicas aos quais a Humanidade está totalmente presa. Medidas vêm sendo tomadas, com lentidão exasperante, na busca ou utilização de energias alternativas, algumas delas acertadamente, outras em forma aberrante e totalmente condenável, como o recurso subsidiado de alguns países, como os EUA, a bio combustíveis, sem respeito pela degradação rápida dos solos, pela perda de áreas cultiváveis para sustento das populações e pela sua luta diária pela alimentação, quantas vezes pela própria sobrevivência.

No que toca aos bens alimentares, seria do mais elementar bom senso que os governos estimulassem, por todos os meios, as agriculturas nacionais, em realidade o caminho mais curto para colmatar a carestia, a falta de alimentos e a fome em muitas regiões do globo quase abandonadas à sua sorte, como certas áreas da África e da Ásia passíveis de serem transformadas em autênticos celeiros, se fossem devidamente ajudadas com capitais, fertilizantes e tecnologia adequada pelos países de maiores recursos, tantas vezes canalizados para armamento de alto custo e nulo benefício.

Mesmo na União Europeia, penso que está na altura dos comissários dedicarem um pouco mais de atenção ao desenvolvimento da agricultura de cada uma das 27 pátrias, contrariamente aos cortes que têm sido incentivados para a falência a prazo das culturas mais difíceis ou menos produtivas, para benefício de uma manutenção artificial -e imoral - de preços e para o aumento dos lucros da poderosa agricultura privilegiada de algumas nações...tudo ao contrário da liberdade, igualdade e fraternidade tão apregoadas, em nome das quais alguns milhões de idealistas, visionários ou simples figurantes deram a vida.

Não sei até que ponto o governo português terá capacidade de manobra para canalizar auxílio para as zonas agrícolas desertificadas, mas deveria fazê-lo, dando ajuda e emprego aos mais prejudicados por esta crise, sem fim à vista. Nem sei também até que ponto muitos ricos e poderosos que fazem alarde da sua imoralidade desviando, por exemplo, enormes quantidades de recursos e água para grandes campos de golf para simples negócio e lazer, deveriam, em lugar disso, colaborar no estímulo da moribunda agricultura local...

Estas são as soluções que antevejo para o nosso futuro próximo. De imediato, era bom que os produtores de petróleo modernizassem e tornassem mais eficiente a sua degradada maquinaria extractiva, produzissem mais crude e houvesse, paralelamente, menos especulação. Mas esses não parecem ser os objectivos da OPEC e seus pares. E o abaixamento dos impostos sobre os combustíveis também não se afigura possível aos governos. Motivo pelo qual, os consumidores europeus -e os portugueses, ainda mais particularmente, -só têm uma solução: restringir a utilização das gasolinas e dos gasóleos ao estritamente necessário, poupando o máximo no consumo e nas despesas ambientais, quer eliminado os gastos supérfluos, quer utilizando transportes públicos ou em grupo.

Antes que outras medidas restritivas mais sérias venham eventualmente a tornar-se necessárias ou acabem mesmo por ser impostas, quer queiramos, quer não.

segunda-feira, 26 de maio de 2008

PETRÓLEO E CRISE

Crónica das soluções incómodas

Tenho ouvido, lido na imprensa ou recebido inúmeras notícias e mensagens relativas à subida de preço do petróleo e suas tremendas consequências a nível da economia e até do progresso e do bem-estar social. Todas elas servem para nos pôr em dia com as crescentes exigências de consumo que se verificam continuadamente, a partir das décadas de cinquenta e ainda outros factores aos quais ninguém ligava importância: a instabilidade permanente, recentemente agravada, na zona petrolífera vital do Médio Oriente, e o aumento desmesurado do consumo das grandes economias gigantes emergentes, a China e a Índia.

Como se isto não fosse pouco, a crise da economia americana (onde os magnates do petróleo têm, afinal, a maioria dos seus investimentos), espalha os seus reflexos desagradáveis em todas as partes do Mundo, até na Europa, do euro forte!

Também não é de pôr totalmente de lado a teoria alarmista de que o petróleo tem os dias contados, porque as jazidas continuam a ser exploradas com uma ânsia e uma ganância extraordinárias nos últimos tempos, numa progressão ascendente sem contrapartida na descoberta de fontes de crude a condizer.

Certo que as grandes companhias petrolíferas também não se descosem, a este respeito mas, com um pouco de sensatez, é lícito suspeitar que algum dia chegaremos ao fim da era dos combustíveis fósseis.

A propósito, tenho perguntado a mim próprio, sem qualquer base de apoio, é certo, se a razão pela qual alguns dos grandes produtores do Médio Oriente se preocupam tanto com o desenvolvimento da energia atómica não será fruto de algumas previsões mais pessimistas que as nossas, a esse respeito…para além das guerras endémicas de que não conseguem desligar-se.

Entre nós a subida do preço do petróleo e seus derivados acompanha o movimento universal, com as consequências que se esperam. As empresas e os consumidores, em geral, protestam. A subida do custo de vida, inerente, é cada vez mais um facto à vista dos cidadãos, mas os seus protestos nem sempre são correctamente dirigidos, ou adequados, ou justificados por boas razões.

Protesta-se porque os dirigentes da GALP ou os «penduras» políticos ganham rios de dinheiro, porque os impostos aplicados pelo Governo sobre a matéria prima base e os sucedâneos são elevados, muito maiores do que na nossa vizinha Espanha (que nos serve sempre de comparação atávica), porque as Pescas, os Taxis a Agricultura, o Gato e o Periquito devem ter preços de excepção ainda mais beneficiados que os actuais, porque os transportes não podem subir de preço, porque os preços são «cartelizados», etc., etc.

Na realidade, tudo isto é justificável ou não, conforme a perspectiva.

Por exemplo, imoralidades como as citadas aos «penduras» da GALP há muitas por aí, em todos os locais que investiguemos. E, quanto ao preço do petróleo, ele deriva simplesmente da subida do crude que é a matéria-prima, reflectindo-se daí para cima, a todos os níveis. Até está na moda um e-mail de protesto solicitando um boicote às três principais distribuidoras de combustíveis: A GALP, a REPSOL e a BP, nos próximos dias 1,2,3 de Junho.

Ora esse boicote, pensando friamente, é uma coisa caricata!!! A GALP, a REPSOL e a BP vendem 99% da gasolina e do gasóleo que consumimos. Tanto elas, como a AGIP e mais dois ou três distribuidores, assim como os próprios postos espanhóis fronteiriços, e outros, compram estes combustíveis refinados à nossa PETROGAL, familiar da GALP !!!

Desta forma, não descortino como é possível fazer assim um boicote aos três grandes.

Deixar de comprar nos dias 1, 2 e 3 de Junho? E ir comprar a quem? E a quantos quilómetros de distância? E fazer buzinadelas em marchas lentas, para quê? Para gastar ainda mais gasolina ou fazê-la gastar aos outros? Diminuir os impostos sobre a gasolina, para quê? Para nos colocarem em cima outros impostos mais gravosos, a fim de compensar o orçamento geral da Nação?

Sejamos sensatos!

Só há três maneiras de boicotar as gasolineiras, salvar o nosso magro pecúlio e até proteger simultaneamente o ambiente e a economia do País:

1-Andar a pé ou de bicicleta, sempre que possível.

2-Fazer associações com familiares, amigos e colegas, nas deslocações de carro, em vez de andar por aí, sozinho, a mostrar o bólide ao pagode, sem necessidade.

3-Utilizar os transportes públicos.

Com toda a certeza que a maioria dos portugueses já pensou nisso, muito antes de mim.

Mas então por que é que eles não querem pôr em prática nenhuma destas soluções? A maioria, porque são comodistas ou têm medo de baixar de nível social...outros porque são oportunistas da situação… outros ainda porque são ceguinhos de todo...

A verdade é que, se as coisas continuarem assim, muitos acabarão por andar a pé ou à boleia, pela força das circunstâncias, o que é bem pior, ficando sem carro mesmo para os seus adorados fins-de-semana onde gastam geralmente a gasolina que ainda sobrou dos dias de trabalho...

Finalmente tenho a acrescentar, para quem ponha em dúvida a eficácia destes remédios, que não estou a falar de cor. Já andei, durante cerca de dez anos, na crise dos anos 70, em «vaquinha» nas idas e vindas do emprego, com mais quatro colegas, em que cada um levava o seu carro, apenas um dia por semana! E cortei, nessa altura, a maioria dos fins-de-semana com a família. Não sinto que, por qualquer desses motivos, alguma vez tenha deixado de ser quem era!

Isto, sim, foi um verdadeiro boicote às gasolineiras, uma pura defesa do consumidor, do ambiente e do País que gasta fortunas com petróleo, de longe a nossa maior importação.

O que se badala por aí, a torto e a direito, é a pura gritaria insensata de muitos, ou o mero aproveitamento de outros tantos, no meio do desespero real de um número cada vez maior de vítimas da situação.

Que em Portugal, o mais fácil é deitar logo as culpas aos governos, exigir-lhes subsídios ou isenções de impostos. As boas soluções poderão discutir-se até à eternidade, mas nunca chegarão a levar-se a cabo. Quando muito, são ideias interessantes para os outros aplicarem...ou cumprirem.

sábado, 24 de maio de 2008

ACORDO ORTOGRÁFICO APROVADO

Assisti à votação no pequeno ecrã

Abri o computador e, numa pasta de arquivo dos Meus Documentos, logo encontrei um artigo cheio de críticas dos nossos apoderados da língua ao novo acordo ortográfico, o qual viria, no dia seguinte, a ser aprovado no Parlamento por enorme maioria dos deputados PS e PSD, com apenas quatro votos contra e algumas abstenções. Assisti à votação, no pequeno ecrã. É obra!

Agora, uma semana depois, confirmo, após nova leitura do tal artigo, que duas espécies de críticas foram feitas na altura: de natureza etimológica e política.

Não discuto as primeiras, que provêem das sumidades universitárias, da Academia, das editoras e de alguns escritores. Têm razão, quanto a «certas imprecisões, erros e ambiguidades» de que falam, mas nada que não se tenha verificado já em acordos ou reformas ortográficas antecedentes. E perdem-na totalmente, quando referem os aspectos políticos da questão.

Para falar verdade, que acordo, reforma ou norma ortográfica existiu em Portugal, desde a fundação da nacionalidade, sem a intervenção, a influência ou a imposição do poder político?

E também uma coisa é certa: por incrível que pareça, nunca uma academia portuguesa conseguiu estabelecer, em oitocentos e cinquenta anos de história, um dicionário completo, uma lista de palavras ortograficamente correctas, inquestionáveis, que pudesse servir de norma às comunidades nacionais, primeiro, e depois à Comunidade dos Países Lusófonos, com o Brasil à cabeça.

Infelizmente, D. João VI, antes de deixar a colónia do Brasil que hoje nos coloniza, também não teve o discernimento e a força política necessários para impor uma ortografia oficial sem discussões, muito por culpa da incompetência, da complacência ou das discussões estéreis dos linguistas encartados da época, incapazes de trabalhar nisso até ao fim, (coisa que os espanhóis fizeram em devido tempo, com a grafia do castelhano), de aconselhá-lo, de incentivá-lo... De então para cá, tanto no Brasil, como em Portugal, muito se tem falado, escrito, discutido, sem chegar aos consensos e às conclusões que se impunham.

Mas sorrateiramente, independentemente disso, a fonética foi sofrendo alterações, tanto em Portugal como no Brasil, e a ortografia também. Claro, esta sempre decidida pelo poder político, a reboque da evolução interna ou sob pressões externas de que os neologismos não são as menores. Entre nós, ainda a Academia estará a pensar nas novas palavras que hão-de ser introduzidas no idioma oficial e já o povo se encarregou de fazê-lo, sem preocupações de maior, com anos e anos de antecedência e à sua maneira.

Sempre assim foi no passado e a recuperação e a adaptação linguística foram ocorrendo, com lentidão e persistência. Mas nestes tempos de evolução tecnológica galopante, a quantidade de neologismos introduzidos no idioma corrente e na ortografia diária é extraordinária e não se compadece com o aparente atraso dos processos académicos. No século das velocidades, os sábios da língua, sempre distraídos, ou andam mais depressa, ou acabam cilindrados sem dó nem piedade. Pelo povo, pelos políticos ou por ambos.

Os políticos são, neste aspecto, menos conservadores, mais realistas, estão apostados em não perder o comboio da modernidade e da globalização que nos transporta a todos, queiramos ou não. Alguns querem, outros não, mas acabam por ir todos...

Lembro-me, a propósito, dos meus avós, que escreviam segundo as normas ortográficas do tempo, e dos meus pais que se viram forçados a adaptar-se às normas impostas mais tarde. Eu próprio fui testemunha de nova alteração gráfica, nos meus anos do liceu, e cá vou cumprindo… Há dias, passei os olhos por alguns documentos dos meus pais e avós e verifiquei que eles tinham sido contrários às ortografias então postas sucessivamente em vigor! Desse modo, no entanto, desapareceram as pharmacias, os adyctos, os syndicatos, as escholas, o thesouro, della e tantas outras grafias correntes desde há pouco mais de um século a esta parte, acerrimamente defendidas e justificadas por uns ou impostas por outros, às quais hoje ninguém liga nenhuma. Uns tantos consideram-nas já obsoletas ou caricatas…

Claro que qualquer um tem o direito de discordar, como bem entender. Mas provavelmente muitos dos críticos mais idosos de agora, acataram a reforma ortográfica anterior, por outros tantos criticada na altura, sem um pio, tal como eu.

A vida é isto mesmo, acordo e desacordo. Os que estão sempre de acordo com tudo não são melhores nem piores que os contraditores sistemáticos. Mas estes, coitados, seja na ortografia, seja noutra disciplina qualquer, amargam a vida deles e a dos outros. E os filhos deles, amanhã, querem lá saber disso! Como em tudo, «in medio virtus».

Tenho que parar aqui, que estou atrasado. Vou vestir o fato. A minha mulher acabou, entretanto de fazer a toalete e está na hora de darmos um giro. Mas antes vou ao atelier levar o dossiê, agrafado com a folha impressa do que acabo de escrever. De facto, só me falta clicar para apagar o ecrã do computador e sair…

Escrevi certo ou errado? Não tive tempo de consultar o dicionário, muito menos a Grande Enciclopédia Luso-Brasileira. Mas também não sei se para isto valeria a pena, se ela está actualizada ou não…

Que me perdoem os membros da Academia, se por aí ficaram algumas antecipações gráficas. Estou a aprender depressa, com os brasileiros…

Assino por baixo:

J. Luiz Garcia Rodrigues, digo Luís, Santo André, 23-5-2008. Sempre ao dispor.

segunda-feira, 19 de maio de 2008

OS CULPADOS DO COSTUME

Crónica de cidadãos, políticos e jornalistas

O preço da gasolina está a subir, a par da inflação e do custo de vida, arrastando a revisão em baixa do crescimento estimado do PIB…

E de quem é a culpa?

Do Estado! Do Governo! Dos políticos!

Quando as coisas correm bem, no País, o mérito é de todos os cidadãos. Quando correm mal, a culpa é dos políticos! São eles os responsáveis, os que se põem a jeito.

E há sempre quem esteja à espreita, calado, a ver o que acontece, e depois atire cá para fora o seu comentário habitual: eu bem dizia…

Os profetas das desgraças são mais que muitos e acertam sempre, a posteriori. Páginas e páginas de censuras aos políticos de serviço são escritas pelos eméritos comentaristas que passam uma grande parte do seu tempo a pesquisar as falhas dos desgraçados que lhes caem no goto e outra parte importante a dar-lhes forma de apresentação agressiva quanto baste, para pagode ler…

Ser político, em época de crise, não deve ser nada fácil, ao menos psicologicamente falando! Ao cidadão comum podem atribuir-se muitos desmandos, mas também perdoar-se outros tantos. Aos políticos, não se lhes perdoa nada, na vida pública ou privada! Exige-se apenas que sejam santos sem mácula e coloca-se, atrás deles, um grupo aguerrido de jornalistas-polícias-coscuvilheiros, a ver se o são, se não derrapam. Depois da descoberta do primeiro pecado, eles vão fiscalizar tudo, para descobrir os eventuais, previsíveis, futuros passos em falso, por mais pequenos que sejam, pois quem não quer ser político, badalado e batido, que não lhe vista a pele!

Há poucas horas, acabei de ler um interessante artigo de um senhor comentarista, queixando-se, como é hábito, das desgraças mais corriqueiras e recentes que couberam ao país, como a revisão em baixa do PIB, a inflação, o aumento do preço da gasolina e outras coisas, e também das ridicularias em que a população se esmera, vítima das reportagens pífias e exageradas sobre o campeonato e a taça, os transtornos dos peregrinos, a beatificação dos pastorinhos, o cigarrinho de Sócrates no avião, os acidentes de viação e as barraquinhas da feira do livro, etc. enfim, tudo a lembrar Futebol, Fátima, e Família, resquícios de tempos salazarentos…E, no último parágrafo, de quem era a culpa? «Dos cidadãos, dos políticos e das políticas do Estado a que temos direito! Um Estado de bola, fé e muita mentira.»

Será uma conclusão correcta? Sim, do ponto de vista puramente formal. A culpa é sempre dos cidadãos e de quem os governa, como diria Mr. De La Palisse, e não há que fugir daqui.

E se a nossa Justiça fosse um pouco mais rápida, com tanta acusação que por aí circula, já teria metido metade da população em prisão preventiva, pelo menos.

Claro que os políticos, pormenorizando, têm culpa de muita coisa.

Mas o comentarista deixa uma porta entreaberta que não se atreve a escancarar, por brio profissional: os cidadãos entretêm-se com as reportagens pífias repetidas sobre o futebol, os cigarrinhos do primeiro-ministro, os acidentes com os peregrinos a Fátima e a beatificação dos pastorinhos, as barraquinhas da feira do livro…E de quem é a culpa destes entretenimentos tão facilmente citados? Será só dos cidadãos em geral que as lêem e dos políticos que não os proíbem? Ou também dos senhores jornalistas, pela propaganda exagerada que fazem das coisas sem importância, e da pouca importância que dão àquelas que verdadeiramente são importantes?

Quem faz as tais «reportagens, pífias e repetidas» até à exaustão, do Futebol, dos peregrinos acidentados de Fátima, do fumo à socapa no avião, dos assaltos às farmácias e bombas de gasolina, dos crimes sórdidos de faca e alguidar, enchendo diariamente cadernos para entreter o cidadão e vender o seu peixe, senão o jornalismo soberano, infalível e justiceiro?

Não disfarcemos os erros dos políticos, nem encubramos os próprios.

A verdade é que, para quem escreve e comenta, é muito mais fácil acusar os outros, neste caso o cidadão que vai nessas balelas, sem escapatória, e os políticos de quem se espera que façam tudo pelo país.

Claro, muito mais cómodo ainda é poder pagar os impostos e permanecer, tranquilamente, sentado à sombra dos pinheiros que ainda restam…

sexta-feira, 16 de maio de 2008

SÓCRATES E O TABACO

Crónica de um português suave…

Há quatro dias que a nossa classe jornalística, sempre tão culta nas reuniões, moralista nas suas páginas e acutilante na censura dos erros do próximo, vem ocupando o seu tempo com o episódio de Sócrates a fumar, descuidadamente, no avião da TAP, a caminho da Venezuela.

Culpado!

Não conheço a lei, mas provavelmente até será.

E, se fumou, é lá com ele. Se alguns ministros ou jornalistas que o acompanhavam fumaram também, é lá com eles! Se foram ou não autorizados pelo comandante do avião, a maior autoridade a bordo, é lá com eles e com o comandante.

Muitas outras investigações podiam ter sido feitas pelos inquisidores a bordo, como por exemplo, se a cortina entre classes estava bem corrida, se alguém foi fumar à socapa para a casa de banho, se os restantes passageiros se importaram com o facto, em que condições de fumo o avião foi fretado, se o comandante se sentiu indisposto ou foi coagido, se alguém teve ataques de tosse, a bordo, se algum dos jornalistas que iam à borla, convidados, tinham feito ou não juramento de solidariedade com os restantes passageiros borlistas ou com os membros do governo, se algum procurador delegado eventualmente presente, leu a lei e os direitos aos prevaricadores e colocou os seus telemóveis sobre escuta, se os estofos das cadeiras não saíram queimados ou chamuscados da cena, enfim, se a gasolina dos isqueiros não inquinou os pratos de comida rápida…se o cheiro a Português Suave conseguiu ou não impregnar os cintos, as bolsas, os depósitos de bagagem, os equipamentos da cabina…Na melhor das hipóteses, a marca de cigarros nem era essa. Essa era apenas a marca dos viajantes no avião.

Estaria aqui até amanhã a citar pontos fracos na investigação jornalística a bordo, publicada e glosada durante estes quatro dias…a que faltou a acusação dos infractores à ASAE, à PSP, se necessário à PJ, para que os interrogassem e multassem sem dó nem piedade, à sua chegada ao Aeroporto de Lisboa, e o mais que adiante se verá.

Outra falha gigante dos senhores jornalistas investigadores foi terem passado como vinha vindimada por cima de todas as autoridades competentes, publicando antecipadamente a notícia, citando leis, tirando conclusões, atribuindo castigos e coimas, rogando pragas ou citando provérbios e princípios de moral cristã meio esquecidos e avisando entretanto os partidos políticos, especialmente os da oposição que, neste caso, rendem mais...

Já todo o mundo sabe que a imprensa se borrifa nas autoridades competentes, que investiga por sua conta e risco, coloca na praça pública os segredos da Justiça obtidos de fontes seguras inatacáveis e bem ocultas…e faz julgamentos infalíveis na praça pública, acima de toda a controvérsia, acima dos próprios tribunais. Mas ninguém teria imaginado que um avião de fumadores importantes se transformasse num caso de estudo, de julgamento com linchamento do Primeiro-Ministro, por ter fumado uma porcaria qualquer que mata e produz cancro, a caminho da Venezuela.

No melhor pano cai a nódoa! O homem fumou, por isso tem que pagar…e a dobrar, porque, como chefe de governo, deve dar o exemplo aos portugueses, suaves ou não. Andam já os deputados da Oposição a afiar as facas para a próxima reunião da Assembleia em que Sócrates será chamado a prestar contas pela infracção à lei, pelo escandaloso acto cometido, pelo mau exemplo dado aos cidadãos…

Páginas e páginas de jornais, horas de rádio-emissores e de estações de TV gastas a rodos, tudo por culpa do Primeiro-Ministro e dos seus cigarros. É obra!

Mas o caso não fica por aqui. Entrevistadores foram ter com ele aos poços petrolíferos, que o caso não era para menos, tentando encostá-lo à parede, fazer com que confessasse a sua culpa, desse espectáculo à população ávida de sensações fortes…E foi o que aconteceu, inesperadamente para os jornalistas e comentaristas de serviço.

Sócrates lá confessou abertamente que se sentia culpado…que lamentava…que pedia perdão… que já não voltava a fazer…que deixaria de fumar definitivamente, para exemplo e tranquilidade de todo o mundo. E pensou para com ele que o assunto estava encerrado.

Ora a coisa não é assim tão simples de resolver, como lhe pareceu. Ai dele se algum jornalista sombra o descobre, por acaso, a dar umas passas ao virar da esquina, ou atrás de alguma cortina improvisada!

Também o Presidente da República teve que se explicar porque havia fumadores nos aviões fretados pela presidência, embora ele próprio não seja fumador…

Como sempre, deve ter havido, nestes dias, muitas outras notícias de impacto para transmitir aos cidadãos, mas nenhuma delas com o impacto destas!

Por isso não resisti a passar os olhos pelos comentários surgidos na net, às notícias referidas, e encontrei alguns dignos de serem encaixilhados…Aqui vai um, a título de exemplo:

«Eu, se fosse o Sócrates, tinhas-os mandado a um certo sítio. E se fosse o Presidente Cavaco dizia para não me incomodarem com este assunto de lana caprina em vez de dar respostas cínicas. É de facto uma vergonha que se ande há 3 dias a discutir uma coisa que nada significa, em vez de discutir os beneficios-maleficios desta viagem ministerial-empresarial à Venezuela. Melhor fariam os órgãos de comunicação social em dar aos portugueses um panorama desta visita: negócios fechados, beneficios para o País, vida da Comunidade Portuguesa na Venezuela, remessas, ou não, desses nossos compatriotas, seus problemas, preocupações e necessidades, entrevistas com os seus líderes e empresários mais representativos, entrevistas com empresários da comitiva e quais os negócios e expectativa, etc., etc., etc.: isso sim, seria excelente trabalho …»

E ainda outro, de ironia fina:

«Isto é de uma extraordinária importância. Sublime!»

Maldito tabaco!

Coitado do Sócrates! Tem azar! É o alvo preferido dos que tudo coscuvilham, tudo sabem, tudo criticam em nome da liberdade de expressão com que espremem os outros, e não produzem sumo nenhum…

Mas este não é caso único. Na antiga Atenas, Sócrates, um homem bom e sábio, não conseguiu livrar-se de ser injustamente julgado, condenado pelos sicários invejosos do seu tempo, e executado por envenenamento com cicuta.

Este Primeiro-Ministro, homónimo do grande filósofo grego e sem chegar sequer aos seus calcanhares, não se livrará também de que lhe sacudam o pó… ou de ser atropelado amanhã, por um recruta!

Tal como ouvi contar acerca de um cábula, a um professor de História, há uns largos anos atrás… ainda a Comunicação Social era vítima da censura e não tinha a força que tem hoje. Nem a imaginação. Nem os meios. Nem o vagar.

Coisas…

quarta-feira, 14 de maio de 2008

O MACHADO DE GUERRA

Efeitos de um racionalismo aberrante

Nos velhos tempos em que se usavam machados, sobretudo nas zonas rurais para cortar as árvores e a lenha para as lareiras, aparar as estacas e muitos outros trabalhos agrícolas, também os exércitos que ainda não tinham posto de lado as fundas, usavam esta arma no corpo a corpo, com resultados de uma crueldade que hoje nos custa sequer imaginar. Foram talvez os índios americanos os inventores do tomawak ou machado de arremesso, quase sempre certeiro nas suas mãos exercitadas, à figura dos colonos que invadiam as suas terras.

O machado era enterrado nas épocas de paz e desenterrado nas alturas de carnificina. Com o advento da civilização, esses costumes bárbaros foram-se modificando mas, nalgumas situações, refinando!

Agora, por exemplo, a crueldade antiga, individual e frequentemente exposta, deu lugar à guerra do botão comandada à distância, impessoal, de crueldade nem sempre entendida nem visível, com o míssil tomawak comandado tranquilamente pelo carrasco comodamente sentado a milhares de quilómetros das vítimas, acertando-lhes em cheio, com tolerâncias de dois ou três metros…

As populações rurais que dantes usavam os machados, feitos e afiados nas forjas de aldeia, também já se habituaram às novas tecnologias economizadoras de energia e muito mais eficientes nos trabalhos do campo, como as serras, as podadoras, as aparadoras eléctricas e tantos outros mecanismos modernos.

Permaneceram, no entanto, algumas utilizações e abusos do antigo machado, como sucede nos matadouros e nos talhos onde os magarefes continuam a usá-lo na tarefa de esquartejar as rezes.

Apesar disso, os acidentes e as agressões com machado são agora neste nosso mundo globalizado, tecnologicamente mecanizado e a caminho da robotização integral, muito raras. Mas ainda acontecem.

Ontem, na Áustria, entregou-se à polícia um homem que tinha desenterrado o seu machado… para enterrá-lo, conscientemente, na mulher, na filha, nos pais e no padrasto, como se de rezes se tratasse, facto ao que parece fruto de um desvio aberrante de raciocínio. O assassino confessou que tinha morto os familiares, para evitar-lhes a vergonha futura de se verem na miséria, causada pela falência iminente dos seus próprios negócios alimentados com os bens que eles lhe haviam emprestado …

A poucas semanas da descoberta de um outro caso que também deixara, como este, a Áustria em estado de choque, este assassinato a frio de cinco familiares vem confirmar que o racionalismo puro, sem o apoio da moral, conduz à selvajaria, como sucedeu com o Holocausto posto em prática pelos povos germânicos conduzidos racionalmente por um louco filósofo baseado em falsos princípios…

A Áustria destes casos anormais bizarros, e outros ocorridos ultimamente com alguma frequência, é a mesma que eu conheci há tempos atrás, purgada já dos crimes da maior guerra da humanidade, de lindas paisagens, de gentes educadas, cultas, pressurosas a ajudar o semelhante, ou é um país de racionalistas aberrantes, de regresso à barbárie dos anos quarenta?

Já não sei, não!

terça-feira, 13 de maio de 2008

COISAS QUE ACONTECEM

Crónica de polícia, madame e cachorrinho

Ontem escorreguei na caca de um cão despejada no passeio e por pouco não me estendi ao comprido. Depois de um calafrio que me percorreu a espinha e me pôs os cabelos em pé, não tive outro remédio senão tratar de disfarçar a porcaria que ficou aderente à sola do sapato, roçando-o, desesperadamente, na borda do lancil.

Depois, por breves momentos, fiquei ali, indeciso, sem saber o que fazer. O pivete já me ia chegando às narinas e começava a sentir vergonha, sempre que passava alguém perto de mim. Estava decidido a regressar a casa, ali perto, mas inesperadamente dei comigo a fixar os olhos num polícia que vinha subindo, pachorrentamente, na minha direcção, a rua que ficava em frente, seguindo uma madame que levava um cãozinho pela trela. Uma sensação estranha de ódio e vingança se apoderou de mim. Apeteceu-me dar um bofetão na madame, um pontapé no cachorro e fazer queixa ao comissário da esquadra, do ineficiente polícia de giro.

Já um pouco mais calmo, encostei-me ao gradeamento do jardim e pus-me a observar o trio que se aproximava, enquanto dois transeuntes passavam à minha frente, faziam um desvio para se afastarem da pasta fedorenta que permanecia ao lado, e olhavam para mim de soslaio, pensando que estaria aquele paspalhão ali a fazer…

Logo, meio minuto passado, o animalzinho alçou a perna e aliviou a bexiga de encontro a uma árvore que se encontrava ali mesmo, no seu caminho, feito o que, completou a operação com a rosca do costume, na borda do passeio, ante o contentamento da dona e a passividade do guarda. Lá ficou a rosca à espera do próximo incauto como eu, dois ou três minutos antes antes…

Uma vez mais me senti irritado com o trio e comigo mesmo, mas logo condoído.

Coitado do animal, pensei. Não vive em liberdade e, ainda por cima, tem de fazer as necessidades sem privacidade nenhuma, agarrado por uma trela às mãos de uma fulana preguiçosa e negligente que não o deixa por pé em ramo verde, excepto naquela ocasião em que lhe era permitida uma réstia de liberdade…Havia que aproveitá-la!

Coitada da madame, sem outra distracção que levar o caniche a desaguar, enquanto o amásio não chegava e o telefone se mantinha silencioso…

Coitado do agente da autoridade, tantas vezes vilipendiado pela população, enganado pelos gatunos de serviço, atacado pelos valdevinos matreiros e, sobretudo mal pago…

Coitados todos eles. E eu que me trame!

Mas que mais se poderia esperar destes três?

A culpa até fora minha, que não olhara para o chão. Os portugueses são uns cabeças no ar…

A maioria dos meus compatriotas atira-se ao governo, pela falta de polícias nas ruas, causa de andar à solta toda esta escumalha humana que nos insulta, nos ataca, nos rouba, nos atropela e se ri de nós, ainda por cima! E desta canzoada que nos passa rasteiras a qualquer canto e infecta os pneus das viaturas!

Mas eu não estou de acordo.

Este País, com letra grande, que tem sobrevivido ao longo de quase nove séculos, contra ventos e marés, anda submerso numa onda de negativismo, fruto de uma gigantesca falta de civismo, na época de ouro da tecnologia e da educação que tardam em nos encher de esperança. Infelizmente, alguns comentaristas fazem também coro com os descontentes e os politiqueiros de serviço, exigindo mais polícias nas ruas, nas repartições, nas bombas de gasolina, nos campos de futebol, nas escolas, nos mercados, nas discotecas, nos museus, nas praias, nos comboios, nos montes, por aí fora…

Penso que não têm razão. Julgo que algo está errado.

Portugal é dos países onde há menos criminalidade, segundo as últimas estatísticas da CE, mas onde, aberrantemente, existe a maior percentagem de polícias, de advogados, de juízes e de presos, relativamente à população. E cerca de trinta por cento dos presos são preventivos!

O que quer dizer que a educação, o civismo e a eficiência no trabalho, dos portugueses, devem estar na fossa, como dizem os brasileiros. E, sendo assim, como concluiria La Palisse, não vale a pena multiplicar o número de polícias para aumentar a nossa segurança, se nós todos não fizermos por ela, aumentando o nosso índice de educação, o nosso civismo e a eficácia do nosso trabalho, o que se afigura uma tarefa bem difícil.

Ora, como tal não se vislumbra, dizia eu há tempos a um amigo, meio a sério, meio a brincar, que em Portugal só se evitariam os assaltos, os roubos, as corrupções e tantas porcarias que a imprensa se dedica a expor ao sol, em seu benefício, se fosse colocado um polícia atrás de cada cidadão…Mas então, seria mister colocar um GNR atrás de cada polícia, um PJ atrás de cada GNR, um magistrado atrás de cada PJ, um fiscal das finanças atrás de cada autoridade e assim por diante, transformando simultaneamente o Alentejo num grande campo de concentração e correcção…

Não me lembrei dos cachorros que andam por aí alçando a perna em cada árvore, em cada roda de automóvel estacionado, em cada esquina, encerando os lancis dos passeios de pomada castanha, embora presos pela trela das madames e cavalheiros sempre muito interessados na protecção de animais de estimação que guardam ciosa e cruelmente nas casotas das varandas ou das marquises das cozinhas.

Assim, por mais que gritem, por mais que protestem, não há polícia que chegue!

Esfreguei, furiosamente o sapato na borda do passeio, disfarcei o mais que pude, dirigi-me ao edifício onde moro, por sinal perto do local do acidente, como disse, abri a porta e lá fui ao pé coxinho até à casa de banho, dizendo de passagem à minha mulher, desconfiada:

-Tem calma, que felizmente não parti nenhuma perna!

-Uffff! Não digas mais nada, que já percebi!...

Depois de moroso trabalho de limpeza e calçados os chinelos de emergência, cheguei à janela ainda a tempo de ver a madame a continuar o seu passeio com o cãozinho já aliviado, e o polícia fazendo a guarda, caminhando vagarosamente de um lado para o outro de olhos postos no chão, por causa das coisas, que o seguro morreu de velho...

sábado, 10 de maio de 2008

APITOS DE VÁRIAS CORES

Culpados às riscas e aos quadradinhos

Há muito tempo já que não vou ao futebol, mas parece-me que era corrente os árbitros utilizarem apitos de metal, cromados ou prateados. Agora leio nos jornais que andam também por aí apitos dourados, assim baptizados, creio, pela PJ ou pelo Ministério Público. E muito provavelmente ainda haverá apitos doutras cores, no panorama desportivo português.

Não estou totalmente a par do processo e das sanções disciplinares que a Liga de Futebol aplicou ontem a alguns árbitros e clubes da Primeira Liga e seus presidentes, em razão de vários cambalachos e apitadelas pífias que ocorreram, e de que alguns dirigentes de outros por elas prejudicados se haviam feito eco, denunciando um pretenso sistema de má nota…

Desde que me conheço, sempre me habituei a ver nos rectângulos e fora deles na própria imprensa, o protesto sistemático dos perdedores contra os árbitros, em denúncia de supostos erros cometidos a favor das equipas ganhadoras. Mesmo nas bancadas, as torcidas entretinham-se frequentemente a invectivar os trios das arbitragens considerados menos favoráveis, não raramente os atingindo, a caminho dos balneários ou à saída do campo, com os mais variados projécteis de que também não escapavam, à mistura, os adeptos das equipas ganhadoras. Eram atitudes lamentáveis, demonstrativas da nossa proverbial falta de educação ou civismo, mas não exclusivas das claques portuguesas, porque praticadas por adeptos de clubes de países que se dizem muito mais educados ou civilizados que o nosso, algumas vezes resultando até na perda de vidas humanas, como aconteceu já na Holanda, na Bélgica, na Alemanha, na Inglaterra e na Itália, para falar apenas da Europa, que doutros continentes nem vale a pena dizer nada.

Finalmente, algumas provas foram obtidas, as acusações foram deduzidas e as penas aplicadas. Vamos ver no que darão os recursos que a seguir, com toda a certeza, irão ser interpostos. Era bom que o tal sistema de má fama acabasse de vez.

De qualquer modo, para já, é triste verificar que alguns destes actos de compadrio passaram das meras suspeições clubistas de dirigentes ou adeptos a situações de culpa provada. O processo Apito Final ditou castigos para essas infracções, coisa que até aqui tinha sido pura miragem, em cem anos de futebol amador ou profissional, melhor ou pior jogado.

Desta vez foram clubes de uniformes às riscas, e aos quadradinhos, com os respectivos presidentes, os castigados em resultado delas, e suspensos da arbitragem os ases do apito coniventes, pois sempre que há um corruptor, é fatal e quase certo haver um corrompido. Raramente há um só corrupto.

Mas temos que aguardar ainda, para completar a faina, o resultado do processo Apito Dourado que corre nos tribunais…

Devia ficar por aqui. Mas estou a lembrar-me de que nem nestas porcarias desportivas conseguimos ser originais, pois outros países civilizados nos levaram a dianteira, como por exemplo a Itália; mas conseguimos, como estamos a constatar, infelizmente, ser discípulos atentos e eficazes.

O que, noutras coisas de muito maior impacto e utilidade para o País, nem por isso!

É o que temos.

quinta-feira, 8 de maio de 2008

GRANDES E PEQUENOS NÚMEROS

Crónica de professores, advogados e poetas

Os números têm uma magia própria, uma poesia que os matemáticos profissionais, na frieza das suas equações, não são capazes de compreender, talvez com excepção dos astrónomos. Também na verdadeira poesia, o profissionalismo não existe. Por isso, todos os poetas morrem pobres, à excepção dos bobos da corte e daqueles que já nasceram em berço de ouro, que são raros, pois a poesia não favorece esta espécie de beneficiados da fortuna. Também não conheço poetas de génio que tenham sido ao mesmo tempo matemáticos de profissão.

Mas posso estar enganado.

Entre nós, o número mais lembrado, criticado, debatido nos últimos anos, tem sido o dos funcionários públicos, sobretudo porque é grande, desproporcionado relativamente à população total do País, não por outra qualquer razão ou por qualquer mania, seja de quem for.

E, dentre os funcionários, os advogados e os professores constituem uma massa de peso, um lastro que os restantes cidadãos têm que arrastar consigo, isto é, que aguentar e pagar com língua de palmo. Certo que professores e advogados são necessários ao País. A população não conseguiria sobreviver, nos tempos de hoje, sem estas duas classes profissionais. Mas existe a sensação geral de que são professores e advogados a mais, para as necessidades.

Alguém discorria, há tempos, que Portugal deveria ser um País de sábios exemplar, com tantos professores, apesar dos muitos analfabetos ainda existentes, os abundantes e cada vez mais iletrados que por aí circulam, os ignorantes visíveis ou encapotados que alardeiam a sua jactância de sapiência onde quer que estejam…

Também a nossa Justiça deveria ser um exemplo maravilhoso de rapidez e eficácia a copiar por meio mundo, com tantos juristas, advogados e outros especialistas do Direito que há por aí, como piolho em costura...

E, contudo, não há maior contra-senso do que estes dois citados, no tal País de guerreiros, navegadores e poetas de que fala a História. Agora somos muito mais poetas, embora poucos e fracos, que navegadores ou guerreiros. O tempo dos guerreiros já passou há muito, o dos navegadores finou-se depois de acabarem os lugres bacalhoeiros e os batéis da sardinha, e restam apenas, para nos entretermos, alguns poetas de meia tigela, com versos de fraseologia e interpretação rebuscada ou pretensamente filosófica, a contrapor à singeleza, à beleza das rimas de Camões, Bocage, Cesário, Pessoa e tantos outros que não precisaram de escrever coisas indecifráveis, incompreensíveis ou de sentido duvidoso para se afirmarem e serem apreciados em todas as épocas. As excepções que existem confirmam a regra.

Excepção foi, por exemplo, um professor emérito do século XX, também emérito poeta, o Rómulo de Carvalho ou Mário Gedeão, conforme a profissão ou o lazer poético exercidos. Creio que, entre tão grande número de advogados ou professores, não haverá muitos e bons poetas a distinguir.

Mas, se isso acontecesse por uma causa justa, vá que não vá. Embora a contra gosto, poderíamos ter um grande número de matemáticos, a contrapor a tantos professores e juristas, a poesia que fosse à fava. Mas não é assim. Nem há matemáticos, nem poetas, nem nada! Só advogados e professores! Só funcionários públicos! Só mangas-de-alpaca!

Parece ter desaparecido finalmente, o senso poético tão comum em Portugal, apesar dos fadistas se esforçarem por aí…esforço inglório. Até a poesia popular está a dar o suspiro final e não transparece de coisa nenhuma, nem sai à rua, neste país de sorumbáticos.

No País do matemático e inventor Pedro Nunes, somos hoje, cada vez mais, um pequeno país de números a esmo, grandes ou pequenos, metidos a martelo em sondagens e estatísticas bizarras, de objectivos nem sempre claros.

No País do Camões e do Pessoa universais, somos agora um triste país de raros poetas...de trazer por casa.


terça-feira, 6 de maio de 2008

O PAÍS DO VINHO

Crónica das bebedeiras tradicionais

Toda a gente sabe que Portugal é o País do vinho, muito mais que um País de vinho. Se não houvesse vinhas neste rectângulo, à beira mar plantadas, Portugal não existiria. Salazar bem o sabia ao decretar o impedimento de importação da coca-cola, com a justificação de que beber vinho era dar de comer a uns milhões de portugueses. O vinho, a cortiça e o peixe foram, durante muitos anos, a salvação económica da Pátria.

No século XX, a entrada em força da cerveja, e mais tarde da coca-cola e similares, veio dar um alerta, propor aos governantes a necessidade de estimular ou descobrir outros amores, de forma a garantir a subsistência. Mesmo assim, o povo lá continuou a enfrascar-se no carrascão, vendido nas tascas a balde ou martelo (conforme as regiões) de cinco e de três e, nas adegas particulares, a garrafões de vidro, de cinco litros.

Tirando o vinho do Porto, de negócio congeminado entre o Marquês de Pombal e os ingleses, pouca qualidade havia, na generalidade da pinga portuguesa, salvo algumas e honrosas excepções. Apesar disso, a rapaziada bebia à grande, abusando de uma tradição quase do tempo da fundação da nacionalidade, considerando-se as sopas de cavalo cansado como remédio milagroso para todas as maleitas, logo a partir de tenros anos de idade, nalgumas povoações, chegando a substituir o pequeno almoço, numa altura em que o leite era escasso e até pouco recomendado.

Nessa altura não era homem de verdade quem não bebesse uns copázios valentes durante o dia e, logo de manhã, ao levantar, o seu cálice de água-ardente que servia para afugentar a solitária frequente nesses tempos e assim ficou, pelos tempos fora, conhecida como mata-bicho. O vinho também curava a tísica, desinfectava a tripa, servia para pensos de feridas e muitas outras coisas, e a água-ardente queimada era o melhor tratamento que havia para o catarro, etc., enquanto a mais forte era poderoso anti séptico, analgésico, anestésico nas operações cirúrgicas, etc…

Em Portugal, de certeza que não existiria fado sem vinho e em Lisboa, por exemplo, não existiriam, sem ele, as celebradas casas de fado.

Depois do 25 de Abril, as cooperativas vinícolas trouxeram uma forte ajuda aos vinhateiros e as normas da CE tiveram ainda o condão de obrigar a delimitar zonas de plantação, estimular o melhoramento das castas e o fabrico e a embalagem adequada de vinhos de qualidade, em substituição da zurrapa tradicional, mesmo apesar da ascensão das vasilhas de plástico, das tinas de cimento e de aço inox, a substituir muito tonel com sarro que dava gosto. As adegas de hoje são um brinco e o vinho, que quase deixou de ser pisado nos lagares para ser espremido com máquinas próprias e analisado ao longo de todo o processo fermentativo e de armazenagem, melhorou muito, para desgosto de certos tradicionalistas.

Ainda bem.

Mas o abuso da pinga é que não acabou, apesar de tantos progressos.

O vinho bom e barato (claro, relativamente ao dos outros países europeus produtores), tem sido um factor incentivador do turismo e isso facilitou o aparecimento de estrangeiros bêbados no nosso país, coisa que só acontecia dantes, na visita das esquadras americanas ou inglesas a Lisboa. Há dias, um casal irlandês acabado de chegar ao Algarve, apanhou logo uma valente piela, abandonando os filhos de tenra idade ao Deus dará, etc…

Voltando aos portugueses. Dantes tradicionalmente enfrascados naquela pasta que frequentemente os atirava mortos para as valetas das estradas de macadame, rapidamente se habituaram à bebida de qualidade e agora, depois de grandes almoços «farta-brutos» bem regados de tintol, provocam inúmeros acidentes mortais nas estradas e auto estradas que cruzam o país inteiro, sem respeito por si próprios nem pelos outros…

Há, no entanto, qualquer coisa de bizarro, nesta maneira de proceder dos portugueses. Numa época de estudos, sondagens e estatísticas por tudo e por nada, seria interessante averiguar que lhes passa pela cabeça. Pessoalmente, creio firmemente que elas não pensam senão retirar importância às situações perigosas, julgando que nunca acontece nada e que, de qualquer maneira, sempre vale mais morrer de barriga cheia, bem comido e bem bebido… Também os brasileiros connosco aprenderam certamente e já cantam: o que se come, o que se bebe...

In vino véritas, filosofavam os romanos de vícios privados e públicas virtudes. Em Portugal é o contrário, as virtudes são caseiras e é de bom tom expor os vícios, vulgo as bebedeiras, na praça pública. Valentes portugueses!

E é por isso que a GNR se farta de apanhar condutores com álcool a mais no sangue, mas não resolve nada com isso. E também outro dia, um guarda entrou num café de bairro e disparou a matar, sem explicação plausível, mas verificando-se depois que tinha álcool em excesso no sangue…

Agora, está na moda, os estudantes universitários, que não são nenhuns analfabetos, celebram a Queima das Fitas com álcool a mais, acham que é bonito apanhar a sua bebedeirazita (já considerada tradicional), autorizada pelo Dux Veteranorum e tolerada pelas autoridades académicas e autárquicas, de cuja cumplicidade resultam todos os anos alguns mortos, mas sem nunca serem encontrados culpados pela polícia, muito menos condenados pela nossa inefável justiça.

E assim, nos vários dias de borga, seja em Coimbra, seja no Porto, seja lá onde for, tolera-se tudo, como também nas discotecas, nas romarias, nas grandes vitórias do futebol…

Pergunto a mim mesmo, pensando bem, para quê mais estudos, mais programas de intenção, mais proibições, mais brigadas?

É evidente que o mal não está nas leis, nem no analfabetismo de antigamente, nem no vinho, nem na cerveja que agora também já faz moda, nem nos automóveis, nem nas estradas ou auto estradas, nem nas multas e na ausência de fiscalização, mas apenas na falta de educação e no fraco civismo dos portugueses, de que os pais e as escolas são os principais responsáveis.

Não só. A tolerância instituída na nossa sociedade ajuda muito…

segunda-feira, 5 de maio de 2008

E A CULPA É DE QUEM?

Crónica de gerações rascas e ignorantes…

Desde o discurso do 25 de Abril, do Presidente da República, muitas páginas foram publicadas e outras provavelmente continuarão na forja, dando continuidade à ideia, querida e mastigada por uma certa camada intelectual, de uma frustração ou descontentamento existentes com a actual juventude. De tal forma que já começa a ser um lugar comum, na nossa imprensa diária, e não só, apelidar a actual geração jovem de rasca, ignorante e muitas outras coisas mais.

Mas a geração de hoje, por alguns leviana ou descuidadamente assim classificada, não é certamente mais rasca nem mais ignorante que as anteriores. Outros defeitos ou virtudes poderá ter, produto das novas tecnologias avassaladoras que a Humanidade já se habituou a tomar como triviais, das filosofias superficiais e desmotivadoras que os mais velhos lhe transmitiram, em pacotes de liberdade fácil e sem regras, sem esforço e sem objectivos claros e atractivos.

Na realidade, a vida dos jovens de hoje é grandemente ocupada naquilo que os mais velhos nunca tiveram, nem sonharam na sua época e que agora, talvez por isso, julgam supérfluo, inútil, imoral. Mas, à gente nova, pouco tempo lhe sobra para pensar nestas balelas.

E para quê, se tudo é fácil, se tudo lhe vem parar às mãos sem esforço, sem trabalho, muito menos sem o sacrifício redentor que dá alegria a largo prazo? …

E, no entanto, a juventude de hoje tem também os seus problemas, como todas as outras anteriores, mesmo com premissas diferentes.

Certo, porém, é que eles não apareceram por geração espontânea, nem foram por ela criados! Eles são o fruto da actuação da geração anterior, como esta recebeu os ensinamentos e os problemas da que lhe deu origem. A única diferença da actual sequência, para as anteriores, é a velocidade das transformações tecnológicas que conduz fatalmente a uma rápida transformação da sociedade contemporânea, numa aceleração nunca dantes descrita nos manuais.

Por isso, temos que concordar, a Humanidade actual, com todas as suas novas questões e as suas dificuldades choramingadas pelos oráculos de serviço, nunca teve, durante milénios, as condições de vida que hoje tem. E, não obstante toda a propaganda do «stress» e dos malefícios do trabalho excessivo dos nossos dias, a mesma juventude não imagina sequer o que marginalmente passaram os pais, e os avós viveram com esforço, fome, analfabetismo ou falta de liberdade…

Também as gentes mais idosas quase não se lembram já das dificuldades do seu tempo de adolescência e os filhos, completamente ocupados no emprego e nos lazeres que se tornaram obrigatórios, no tempo que lhes sobra culpam a juventude das deficiências que, na sua permissividade ou nas suas frustrações, não souberam evitar ou corrigir a tempo.

Mas seria de esperar outra coisa?

Com todos os defeitos que os mais velhos encontram na sociedade actual, chegam agora aos oitenta, quando os seus pais não ultrapassavam os sessenta e cinco. E provavelmente os seus filhos alcançarão os oitenta e cinco anos, quase por regulamento…das chamadas jovens gerações rascas e ignorantes.

Algo não bate certo.

A verdade é que, quanto mais temos, mais queremos, mais nos queixamos!

Pese embora o desconsolo dos fazedores de opinião, a juventude de hoje não é melhor nem pior que foi a deles ou que todas as outras anteriores. Tem as virtudes e os vícios que lhe foram sempre apontados ao longo da História da Humanidade, em que apenas os mais velhos -que já foram também chamados rascas e ignorantes (ou coisas piores) no seu tempo -foram sempre acusadores infalíveis mas sempre culpados…sempre de consciência tranquila…mas sempre incapazes de corrigir as suas faltas…

Claro, há muitos sábios e treinadores de bancada por aí, a tentar comandar as hostes, mas poucos que se se penitenciem dos seus erros, fruto da sua própria ignorância. A culpa é sempre, sempre dos outros!

quinta-feira, 1 de maio de 2008

SELVAGENS DOS TEMPOS MODERNOS

Crónica de uma Áustria desconhecida

Quando, há anos, passei pela Áustria, em passeio, fiquei maravilhado com as paisagens indescritíveis, as gentes, a cultura, a beleza, a riqueza que ressumavam de qualquer lado, e deixavam os turistas e a mim próprio, deslumbrados.

Durante muitos anos, tive a Áustria como um modelo paradigmático de País civilizado. Mas não há bela sem senão, como diz o sábio ditado popular lusitano.

A notícia que invade as televisões de todo o mundo, a todas as horas, até não se sabe quando, causa estupefacção e faz vómitos às gentes simples do nosso país onde, infelizmente, também há crimes hediondos, mas não há memória de uma tragédia deste calibre, fruto de refinada determinação a longo prazo.

Os selvagens que nos mostravam na infância eram valentes, repentinos, não se mostravam capazes de cenas tão sofisticadas, na vida real, muito menos nas histórias de quadradinhos do Pim-Pam-Pum, do Mosquito ou do Pirilau.

E quem se atreveria a supor que a super civilizada Áustria seria a pátria de uma selvajaria como esta recentemente descoberta e outra do mesmo tipo posta a nu ainda há bem pouco tempo?

O que mais impressiona, nestes dois casos, é o facto de serem praticados em meios urbanos, por pessoas descendentes de pais normais, com instrução e educação média superior, com condições de vida razoáveis, habitando zonas normais, rodeados de vizinhos normais, de famílias normais.

Num dos casos, um jovem manteve sequestrada num cubículo, durante dez anos, uma criança que «adorava». No caso mais grave, o criminoso que fazia uma vida aparentemente normal e era casado com uma mulher normal, teve artes de esconder dela e de toda a vizinhança e enclausurar uma filha de onze anos, numa cave 45metros quadrados de superfície e 1,7metros de pé direito disfarçada na própria casa, durante vinte e quatro anos (!), violá-la e fazer-lhe sete filhos -um dos quais morto por falta de cuidados e queimado ali mesmo, o mais velho agora com dezanove anos -todos sem nunca verem a luz do sol, sem conhecerem mais ninguém… num cenário que toca as raias do imaginário, de uma profunda irrealidade, difícil de descrever…e até de acreditar.

Ocorre perguntar por quê, tamanha desumanidade? …

E não se vislumbra qualquer resposta.

Provavelmente, dirão alguns, o abandono da religião e dos princípios da moral cristã serão os responsáveis.

Outros atribuirão os casos a distúrbios mentais dos executantes.

Outros ainda, a dificuldades e condicionantes várias da vida dos criminosos.

Enfim, um sem número de apreciações e de ideias poderão ser feitas ou emitidas, mas ficaremos sempre na mesma ignorância inicial, o que nos remete, infalivelmente, para o desconhecimento das medidas a tomar para evitar, no futuro, situações semelhantes.

E nós, que estamos tranquilamente em casa a ver ou ler estas notícias chocantes, estas aberrações monstruosas, mais não sabemos, na nossa estupefacção, no nosso medo, na nossa cobardia e na nossa ignorância, do que virar a cara para o lado, horrorizados e dizer num vómito:

-Selvagens! Não quero ver mais isso!...

Mas se aqueles que, por atraso da nossa civilização em chegar até eles, fossem confrontados com estas cenas, sentir-se-iam ofendidos na sua moral primitiva, na sua humanidade pré histórica.

Na realidade, esses criminosos que a frio planearam e executaram tais crueldades em pleno século XXI, nem sequer imaginadas por bárbaros ou selvagens de milhares de anos A.C., não merecem que os tratemos como homens. Os animais tratam as crias com mais carinho.

E no entanto, há sessenta e tal anos, foram os habitantes germânicos daquelas paisagens maravilhosas, orgulhosos da sua cultura, mas subservientes ao mandado de um louco austríaco que planearam tranquilamente, a frio, o holocausto de dez milhões de judeus…

Apesar da distância dos factos, é difícil não associá-los, não pela dimensão dos actos em si, mas pela frieza refinada do seu planeamento e execução, muito menos passar uma esponja por cima deles.

É com muita tristeza que recordo as gentes delicadas e as belas fotos que tirei há anos nesse maravilhoso país de que só conservei boas recordações.

Infelizmente o mundo é assim, tem destas contradições.

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