sexta-feira, 23 de janeiro de 2009

OUTROS TEMPOS


Novos ventos

Hoje recebi um e-mail muito interessante. Fez-me recordar certas particularidades doutros tempos, deixando no ar, apenas isso, uma eventual comparação com os novos ventos que condicionam e arrasam a nossa vida actual.

Claro que se torna impossível fazer essa comparação exaustiva, na realidade, tantas são as diferenças, para melhor e para pior. Mas, pensar naquilo em que ocupávamos o tempo, há sessenta ou setenta anos, traz-nos fatalmente à memória as dificuldades da vivência da população em geral, numa época ainda não muito longínqua.

O progresso trouxe enormes benefícios e conforto à Humanidade e, por isso, ninguém pretende, apesar dos contratempos de percurso inevitáveis, voltar ao antigamente. E no entanto, uma saudade imensa nos invade, cada vez que alguém ou algum acontecimento nos vêm recordar esses tempos que agora nos parecem de ingenuidade, beleza, solidariedade, felicidade plena...

O e-mail recebido lembrou-me a idade do jogo de berlinde, das cópias trazidas para casa, da caça aos pássaros com fisga, da ida a pé para o liceu, das aulas com as mãos cheias de frieiras, dos jogos com bola de trapo no recreio, mais tarde dos piqueniques no campo ao domingo, das brincadeiras inofensivas de estudante universitário que já ia para a faculdade de eléctrico, do primeiro emprego a ganhar dois mil e quinhentos escudos...

Tudo isto me parece agora, à distância, uma perfeita história que dava para um romance que, vendo bem, não o foi tanto.

Lembro-me muito bem, e não posso esquecer, das crianças descalças a caminho da escola em pleno Inverno, e das mães com a trouxa de roupa à cabeça durante quilómetros, para lavar no rio, com água gelada até ao joelho. Recordo os cavadores de enxada que trabalhavam numa jorna de sol a sol por vinte escudos e um litro de vinho carrascão, os trabalhadores de pá e picareta, atolados nas valas inundadas das cidades, os pescadores em barquitos a remos no mar alto, as ceifeiras curvadas um dia inteiro, sob um sol abrasador, os pastores na serra, ao sol à chuva e à neve, abrigados nos barrocos e mitigando a fome com um naco de pão duro com toucinho.

Quantos quadros, quantos romances não foram escritos, nos séculos XIX e XX, tendo estas «idílicas» imagens como pano de fundo, tentando mostrar a felicidade das personagens?

É caso para perguntar qual felicidade, já que alguns provérbios tentaram, no meio de tanta desgraça, distorcer a realidade, dizendo que a riqueza não traz a felicidade, o dinheiro não é tudo, vale mais ser pobre e feliz...

No Verão passado, fiz uma visita à multissecular Universidade de Salamanca que está transformada em museu, na sua parte mais antiga, e não pude deixar de impressionar-me com a incomodidade dos alunos de quinhentos, nos dias de neve frequente, em salas de aula de vetustas, grossas e graníticas paredes, sem aquecimento, sentados em simples e toscos bancos de castanho sem encosto, quase às escuras ou à luz de tochas, ouvindo perorar o mestre sentado num púlpito, sem direito a qualquer contestação. Naquela época, em Portugal, a Universidade de Coimbra funcionaria de maneira semelhante...

Seriam todos felizes, com esses escassos meios?

Continua a ser difícil saber. Nos tempos de hoje, com tantas comodidades e conforto, novos ventos varrem transversalmente a nossa Sociedade. Ao sair dos claustros da Universidade de Salamanca (como poderia ter sido dos de Coimbra), lembrei-me dos miúdos de dez anos que em Portugal fazem manifestações políticas, contestam os professores quando lhes apetece e fecham as escolas a cadeado, com a complacência dos pais e a indiferença dos professores...

Será que aqui reside a felicidade deles?

Também não sei. Mas, por momentos, enquanto escrevo, sinto-me feliz só de pensar que fiz parte de uma escola diferente, lutando com enormes dificuldades, mas funcionando na base de uma responsabilidade exaltada pelas necessidades diárias, e no respeito mútuo entre pais, alunos e professores.

E não consigo imaginar o que estes ventos de modernidade irão trazer, de bom e de mau, a esta Humanidade eternamente insatisfeita.

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