segunda-feira, 5 de janeiro de 2009

MORTE NA ESTRADA


O desprezo das evidências

Parece um pleonasmo, uma aberração, mas a verdade é que há evidências que só se tornam visíveis depois de muita falta de visão ter manietado a inteligência.

Um jovem servente de pedreiro regressou da Suiça, onde estava emigrado, à sua terra natal, sentado ao volante de um carro desportivo que fora o seu sonho de menino. Resolveu, logo no dia seguinte, convidar duas garotas suas amigas de infância, a dar uma voltinha na sua máquina nova e, poucos minutos depois, a alegria transformou-se em tragédia. O bólido, a 200 quilómetros à hora numa recta com várias lombas, despistou-se, no piso húmido, partiu-se ao meio contra um pinheiro e incendiou-se deixando os três ocupantes desfeitos e carbonizados.

Evidentemente que a estrada, o carro, o condutor e as amigas não estavam preparados para o que aconteceu. Também os familiares das vítimas, os vizinhos e amigos, a própria população de Ferreira do Alentejo não estavam. Ninguém estava preparado para tanta evidência, para mais numa trágica comemoração de um aniversário, em pleno início do Ano Novo!

Mas a evidência só se tornou real e visível aos olhos dos que escaparam, depois da ceifa mortal que tivera lugar. Nenhum dos circunstantes tivera a visão de alertar previamente os acidentados para a evidência que estava à vista de todos...

É sempre assim. As evidências mais evidentes só se tornam visíveis após o desastre em que a falta de visão foi evidente, ou a própria visão foi obnubilada.

Durante vários anos, o itinerário principal 5 foi conhecido pela estrada da morte, o I P 5 de má memória, apesar das evidências conhecidas de todos, o mau traçado da via, a deficiente sinalização, o enorme trânsito que o ocupava e, mais que tudo, a evidente falta de cuidado e de cumprimento das regras de condução pelos motoristas que o utilizavam. Era evidente que, com o conhecimento propagandeado aos quatro ventos, das deficiências da via, os condutores se rodeassem de cautelas, cumprissem rigorosamente as regras de trânsito e os diferentes sinais de limitação ou aconselhamento existentes ao longo do percurso. Mas essa evidência raramente foi vista a tempo. Geralmente, só se tornou evidente depois de cada morte ocorrida, e foram muitas, ao longo destes anos.

Um diário aponta hoje para mais uma evidência post mortem. A auto-estrada A 25 matou, num ano de uso, um quarto das vítimas do anterior IP5 que veio substituir. Certamente isso aconteceu, mais que tudo, pela separação física das vias de circulação de sentidos opostos, o que veio quase impossibilitar os choques frontais, e não pela evidência de má condução só tornada visível aos próprios quando já era evidente a impossibilidade de alterar comportamentos...

Era evidente, previsível que as camionetas de reboque e os pronto-socorros viessem a ter menos utilização, com a abertura ao trânsito da auto-estrada, mas isso só se tornou visível com a publicação das contas da Brigada de Trânsito, no fim do ano, e a contabilidade dos operadores que viviam à custa dos acidentes.

Tantas evidências à vista, sempre desvalorizadas, cansam. Mesmo a quem é inteligente, paciente ou usa óculos.

É caso para pensar, evidentemente, por que motivo os perigos mais evidentes nos deixam quase sempre cegos, patetas, indiferentes na altura própria?...

Não consigo ver a razão da nossa cegueira, do nosso desprezo por essas tremendas evidências. Quem sabe, talvez o motivo seja a nossa íntima convicção de que somos superiores a tudo e a todas as evidências...

E é evidente que não.

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