Hoje apeteceu-me divagar, escrevendo algumas linhas talvez sem nexo, ao correr da pena. Veremos o que acontece.
Começo pelo frio que tem ocupado grande parte dos nossos noticiários, pelas razões mais variadas. Antigamente, quando o país tinha uma população eminentemente rural, as dificuldades com as baixas temperaturas eram muitas, mas as reclamações muito poucas. As lareiras lá iam satisfazendo as necessidades nas casas de pedra, a maior parte delas de granito de cinquenta centímetros de espessura e soalhos de castanho sob o qual o gado e a palha serviam de aquecimento, na falta de energia eléctrica. Pior sempre foi nas cidades mas, tirando as da Beira e Trás-os-Montes que se viam mais aflitas, lá se ia dando a volta ao problema com o carvão das braseiras, os fogões de lenha e outras espertezas em que os portugueses, por necessidade, eram férteis.
Andar nas estradas nunca foi problema, nessas alturas, porque quase só havia caminhos, nas poucas estradas que havia circulavam pouquíssimos carros e, quando nevava, o pessoal ficava em casa ou andava a pé.
Com o passar dos anos, as estradas, a emigração para o Litoral e a desertificação do interior trouxeram novos problemas, mas sobretudo grandes melhorias de condições de vida das populações que, pouco a pouco, se foram habituando a novas comodidades, desleixando-se também das lides que tinham sido, durante séculos, o seu dia-a-dia. E com isso vieram as exigências, as reclamações em exagero.
Muitas delas são perfeitamente justas, apesar de tudo.
Reclama-se pelas escolas com deficiências de construção ou falta de aquecimento onde as crianças têm frio, pelas estradas onde a neve dificulta o trânsito e não há sal ou limpa neves em quantidade suficiente, pela falta de auxílio adequado aos idosos e aos sem abrigo que dormem nos vãos de escada, em condições infra humanas, pelos hospitais onde as urgências não chegam para os doentes da epidemia de gripe, etc. etc. Parece que o país nunca teve tanto frio, nunca esteve tão mal, tão doente e tão desprotegido como agora, nunca teve um governo tão insensível e inoperante como o actual, para com uma população tão carente, tão falta de recursos, tão miserável. E, no entanto, há sessenta e tal anos, eu ia a pé para a escola, ou para o liceu, passava três meses com as mãos roxas, cheias de frieiras e o nariz a pingar, sem uma queixa, e também sem dar uma falta em todo o ano lectivo...
Alguns casos bizarros têm acontecido durante estes dias de frio, que nos colocariam na lista de países com populações anormais, se não pudessem ser facilmente explicados, como os vários incêndios ocorridos nas duas maiores cidades do país, causando mortes impensáveis,em qualquer parte, com verdadeiras carbonizações de corpos, apesar das temperaturas do ar roçando os zero graus centígrados! Onde, senão em Portugal, existe um frio incendiário?
O pessoal resolveu viajar para o Algarve, fazendo caso omisso dos avisos do Instituto Meteorológico, das autoridades de trânsito. Muitos encontraram a morte na alta velocidade da ida e, a maior parte, no excesso de velocidade e de bebida, no regresso.
Lá para o Norte, a coisa foi pior. As estradas com neve e gelo não assustaram os condutores aventureiros que nem sabem o que são correntes para aplicar às rodas, nestas situações, mas reclamam da falta de limpa neves, dos Bombeiros, da Brisa, do Instituto de Estradas de Portugal, das Autarquias e do Governo que não actuam, não prevêem, não querem saber dos problemas do cidadãos que trabalham, ao contrário do que acontece na Espanha, em França, na Suiça ou na Alemanha, onde nada disto acontece, e são países onde cai neve muito mais que em Portugal.
Ontem recebi um telefonema de um amigo que reside nos arredores de Madrid , informando que estava há três dias fechado em casa, com toda a família, rodeado de neve de meio metro de altura, sem qualquer hipótese de tirar o carro, mesmo com correntes aplicadas, ou sair para o emprego. Nestas alturas, disse-me ele, quase todo o pessoal se previne com géneros alimentícios e meios de aquecimento para estas emergências. E o próprio aeroporto esteve encerrado ao tráfego durante dois dias...
Ao ver a TV espanhola notei igualmente que os camionistas e os viajantes que atravancavam as estradas do país vizinho, quando entrevistados, lamentavam a situação, porque alguns até tinham sido apanhados de surpresa, mas não deitavam a culpa a ninguém, a não ser a São Pedro que reserva esta quadra festiva para pregar as suas partidas. Já estão habituados.
O mal dos portugueses é mesmo esse, não estão habituados. O clima por cá é muito bom, como gabam os estrangeiros que nos visitam, e por isso nem querem habituar-se às inclemências ocasionais. Também não querem precaver-se. E, além de tudo o mais, não conseguem aceitar, ou desvalorizam mesmo os conselhos dos maiores...
Dizem mal de tudo e de todos, mas os maiores são eles!
Quando passar o frio, destilado todo o fel que as gentes puseram a circular contra tudo o que não lhes agrada, culpando meio mundo das suas infelicidades ou imprevidências, virá a Primavera para embasbacar os mais românticos, assistir aos jogos de futebol e culpar os árbitros pelos desafios perdidos, ou da perda do campeonato...
Até voltar o calor e culpar os mesmos de sempre por tudo o que de mal acontecer, não esquecendo os Bombeiros, a GNR e especialmente as Autarquias e o Governo que não souberam actuar correctamente na defesa dos cidadãos e das florestas, nem acabar com as queimadas, as sardinhadas, ou as beatas atiradas propositadamente pela janela fora, dos carros acelerados...muito menos com algumas mortes resultantes da pura imprevidência e falta de civismo que abundam por aí.
Vou ligar o aquecimento, que tenho os pés frios. Lembro-me agora de uma reportagem que vi, há dias, na TV, onde alguns sem abrigo não aceitavam abandonar a sua fina e gélida caixa de cartão, sair do seu vão de escada e dormir numa cama que lhe ofereciam, para não perder o seu emprego, na verdade o lugar destinado, ali perto, pela máfia dos arrumadores de carros...E recusavam o auxílio sem uma queixa, estes desgraçados. Pediam apenas que os deixassem em paz.
Também, olhando para o jardim que tenho em frente da janela, vi há poucas horas um velhinho empurrando devagarinho um carrinho de bebé todo desengonçado, quase cheio de restos, de misérias. Parou em frente do contentor do lixo e pescou do interior, com um pequeno arame, qualquer coisa que não consegui identificar, seguindo o seu caminho magrinho, orgulhosamente, provavelmente na direcção do contentor seguinte. Por ele passaram, importantes, duas madamas cavaqueando e passeando os respectivos cãezinhos, gorduchos, brincalhões, devidamente agasalhados...
É o mundo cão, onde as pessoas trabalham menos que dantes, têm grandes benefícios, reclamam cada vez mais e, mesmo ao lado, muitas outras valem cada vez menos, algumas mesmo menos que os animais.
O nosso grande problema não é o frio ou a falta dos limpa-neves tão reclamados por uns quantos, mas a falta de calor humano.
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