Já não depende do fotógrafo
Hoje deu-me para uma certa ironia amarga, depois de mergulhar, desde há vários dias, nas notícias de cenas pouco edificantes apresentadas pelos jornais à opinião pública.
Quando uma pessoa diz algo que supõe verdadeiro e outra desmente, costuma dizer o povo que uma delas vai ficar mal na fotografia. Mas o certo é que, no tal país dos brandos costumes que conhecemos, já nos vamos habituando a reconhecer que ambos acabam por sair em beleza! É o que acontece nos diferendos entre as altas personalidades, as corporações profissionais ou de interesses, e os próprios partidos políticos. As excepções só confirmam a regra e aos pequenos ela não se aplica, porque só tiram a fotografia para o B.I. ou quando, por algum azar, vão parar à choça!
Embora custe a acreditar a muito boa gente, neste Portugal de coisas bizarras, a verdade e a mentira nunca são a preto e branco. Entre aquele que afirma e aquele que nega existe sempre uma zona invisível ao comum dos mortais onde ambos convergem e se abraçam, às escondidas ou mesmo às claras, depois do espectáculo degradante dos insultos em público, em que só faltou baterem-se. Até acontece, de vez em quando, acabarem num almoço em restaurante a condizer com o estrato social dos contendores. No Parlamento, por exemplo, acontece quase diariamente. Cá fora, demora mais algum tempo.
Também a imprensa tira os seus proventos do diz-que-disse-ou-não-disse para vender mais uns quantos números, enredando o Zé na fofoca ou folhetim diário de quadradinhos, embora seja de destacar, contudo, o seu papel no despoletar de muitas situações anormais que vão acontecendo por aí. Pena que, muitas vezes, fique também ela igualmente enredada nessas histórias, perdendo-se numa série de artigos contraditórios, de acusações e desmentidos, numa luta de todos contra todos que só termina com o lançamento oportuno de outra novela ou nova e longa série de quadradinhos.
Estes casos vão-se sucedendo assim, nos noticiários, com uma regularidade impressionante, alternando o empolamento das situações mais mesquinhas e inverosímeis, com a apresentação bombástica de coisas muito mais sérias e do interesse do cidadão comum...
Acabado o folhetim de turno, o assunto volta à normalidade do esquecimento ou fica em banho-maria, com os verdadeiros e os mentirosos repousando tranquilamente, ou gozando das suas mordomias, enquanto a Justiça se entretém com as suas montanhas de papéis, os seus códigos, os recursos, e as sentenças finais em que tudo é possível terminar, quando as prescrições não acontecem. Nesses casos, embora sempre com visos de legalidade, o Zé desconfia, por sistema.
Os enredos do BCP, do BdP, e agora do BPN, são péssimos exemplos em que os actores de serviço saem pouco dignificados ou mesmo desqualificados. Os portugueses lamentam vivamente, mas lá se vão habituando a estas cenas, aguardando pacientemente os respectivos desfechos, descrendo sempre dos resultados dos inquéritos, da eficácia das comissões, dos meandros da Justiça e até dos veredictos finais que venham a ser proferidos por ela.
É por estas e por muitas outras que os nossos patrícios se tornaram desconfiados, até da própria sombra.
Na verdade, foram-nos habituando a isso, desde que a democracia liberal se instalou, nos meados do século XIX, num refinamento das atitudes opostas cada vez mais agressivas e permanentes, com as consequentes revoltas populares ou militares a que o caciquismo reinante também não foi estranho, tudo em nome da salvaguarda do futuro da Pátria, dos mais sagrados princípios...
Assim acontece ainda, sem a violência física de outrora, não pela defesa da sacrossanta liberdade de voto, mas simplesmente pela caça ao voto, agora exercida com grande eficácia da propaganda e uma violência verbal inusitadas, muito próprias da época que atravessamos!
Também foi pela caça ao voto que a imprensa veio paulatinamente a ser utilizada e a ocupar o lugar dos encontros de ajuste de contas a dois, dos duelos de antigamente. Agora os duelos são públicos, na imprensa, com muita parra e pouca uva, com resultados finais geralmente nulos, com os adversários a saírem todos da contenda com os bolsos recheados, muito felizes e contentes, sempre de consciência tranquila, prontos para a fotografia de família!
Valha a verdade que, há cento e tal anos, havia, ainda assim, um pouco mais de pudor, porque a fotografia ainda dava os primeiros passos e era frequente ficar mal quem não se portasse bem, quem não estivesse muito quietinho. Foi assim que, mesmo em Portugal, alguns mal fotografados terminaram na cadeia, no suicídio ou emigraram de vez...
Mas agora, já não depende do fotógrafo. Na era da tecnologia digital e das velocidades, qualquer um pode disparar o obturador e as fotos saem sempre bem. É muito, muito difícil a alguém sair mal na fotografia, por mais tropelias que faça.
E por isso nunca deixaremos de ser o país a que já nos habituaram...
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