domingo, 9 de novembro de 2008

PANORAMAS E CONTENTORES


Paródia à incerteza de Heisenberg

Agora estão na moda os contentores, por razões económicas ou por apreciação panorâmica. E assim, vá de recorrer-se a petições à Assembleia da República, uma já chamada lírica, e a outra selvagem, conforme os peticionários... Ambas invocam, com argumentos diversos, o mesmo objectivo de melhorar a qualidade de vida dos habitantes de Lisboa.

Deixá-los lá a fazer assinaturas, como gente civilizada, ou a ranger os dentes nos intervalos, como descendentes dos selvagens, porque não estou interessado em qualquer das opções. Prefiro historiar e brincar, à minha maneira, com a evolução dos panoramas da cidade e arredores.

O Tejo devia ser, em tempos que já lá vão, um curso de água selvagem e bonito, mesmo nas proximidades da actual cidade de Lisboa. Nessa altura, com toda a certeza, os habitantes seriam raros nas suas margens, andariam descalços, quase nus, e não deitariam latas de coca-cola, nem sacos de plástico, ou outras barbaridades modernas para as suas águas transparentes. Tudo era, então, uma autêntica selvajaria, uma agradável selvajaria de gentes, animais e panoramas vastos até ao infinito. Mas todas as coisas boas (?) têm um fim, neste caso um fim selvagem...

O que estragou tudo, desta vez, foi mesmo a inteligência desses tais selvagens. Eles tinham mesmo inteligência, como se provou (embora alguns sábios e religiões duvidassem disso até há pouco tempo, no caso de algumas raças) e resolveram, inteligentemente, mudar a selvajaria que os rodeava em seu proveito, sempre com o objectivo, cada vez mais acentuado, de tirar um maior rendimento das suas ideias e transformações. E dessa forma, esquecendo muitas vezes os selvagens seus semelhantes, ou aproveitando-se deles ao máximo, nasceu lentamente a civilização e o capitalismo liberal dos nossos dias.

Mas muito antes disso, já no século XII, D. Afonso Henriques, por exemplo, não achou Lisboa e o Tejo aquela selva primitiva adorada pelos celtas ou cantada pelos poetas medievais, embora se rendesse à selvajaria dos cruzados francos e flamengos na tomada da cidade, poluindo o panorama do rio com o sangue dos seus defensores.

No apogeu da gloriosa Época dos Descobrimentos Portugueses, já o Tejo, em volta de Lisboa, era muito menos selvagem, e as suas margens pouco menos. As gravuras dos séculos XV e XVI mostravam as construções do Paço da Ribeira, rodeadas pelos armazéns de mercadorias e pelos sacos empilhados um tanto desordenadamente, porque o espaço ainda não faltava. As naus, as caravelas, as chatas, os barcos de cabotagem e os barquitos a remos, baloiçavam mesmo ali defronte, como um formigueiro e os carpinteiros trabalhavam nas reparações e construções navais, também não muito longe dali....Era um panorama de trabalho.

Provavelmente o rei assomava, de vez em quando, a uma das janelas do seu palácio de dois ou três andares, no máximo, e podia enxergar todo esse limitado panorama, com toda aquela gente a trabalhar para ele, ali pertinho, enquadrada, à cautela, pelos quadrilheiros e arcabuzeiros reais. Era uma beleza!

Já os nobres que subiam a cavalo um pouco mais alto, em passeio de espairecimento, ou se sentavam, ociosos, nas suas propriedades ou palácios em sítios estratégicos, conseguiam ter um panorama muito mais vasto que a família real, espraiando a vista até à outra margem longínqua. Mas era um panorama bizarro, porque podiam ver-se também as filas ou grupos de escravos, amostras da vida selvagem de outras paragens, ali conservadas e mantidas à força, e que lá em baixo carregavam os sacos das suas encomendas ou os barris de água para atestar as naus de longo curso. Igualmente a guarnição que se acantonava no Castelo de S. Jorge e a rapaziada que corria nas ruelas de Alfama e da Mouraria tinham direito a imagens semelhantes, com pequenas variantes. Mas tão corriqueira aquela vida se tornava que ninguém ligava nenhuma aos panoramas, quais quer que eles fossem.

Alguns eram, efectivamente, panoramas de veras interessantes, o que levou à cobiça dos reais senhores. Por isso se foram mudando aos poucos dali, daquela zona de panorâmica tão limitada, para as Necessidades e para o Alto da Ajuda, donde poderiam alcançar muito mais longe. E a nobreza lá se foi quedando pelo Alto de Santo Amaro, pelas Janelas Verdes, pelo Bairro Alto, enfim, pelas zonas de alturas intermédias, até onde o seu cacau e o seu número cada vez mais reduzido de escravos negros permitia.

Parece que as invasões francesas vieram acabar de vez com estas mordomias e trazer a burguesia ao de cima, em Portugal, não obstante tivessem deixado o país de tanga, como agora se diz por aí, sem grandes perspectivas e mesmo sem vontade de apreciar panoramas. Com a miséria e a porcaria que se divisava por todo o lado, nem isso era possível, porque até os escravos negros que dantes carregavam a água e faziam as limpezas mais arrepiantes desapareceram de Lisboa ou foram deixados nas suas terras de origem, apresentadas às gentes civilizadas da Europa, pelos novos exploradores do século XIX, como museu vivo muito falado e discutido nas tertúlias da gente mais fina e religiosa da Época.

O aumento de população que veio a seguir, com as sua inadiáveis necessidades e os barcos a motor, deram a última machadada nos resquícios de selvajaria panorâmica ainda existentes, do Tejo e seus arredores, embora alguns se esforcem, ainda hoje, por manter aberto ao público um museu de garças, de golfinhos e de minhocas, com resultados cada vez mais parcos.

Também os panoramas mudaram, com o tempo, de pontos de observação. Passaram quase todos para os cruzeiros de turistas, os balões de recreio, os helicópteros e até os aviões que voam mais baixinho...Restaram, em terra, os locais quase sempre inacessíveis e com entrada paga, como o Cristo Rei, o Castelo, o Alto de Monsanto, o Palácio da Ajuda, e as cúpulas da Estrela, de Santa Engrácia, de S. Vicente de Fora, etc. Mesmo algumas esplanadas e varandas populares de Lisboa foram tomadas de assalto pelos cafés, restaurantes e bares destinados à burguesia jovem, a quadros de empresas ou a velhotes com dinheiro. Finalmente, os miradouros de Santa Luzia, de Santa Catarina e outros semelhantes, mais baixinhos, foram deixados livres para a gente mais modesta e sem cheta.

As margens do Tejo, outrora selvagens, são agora ocupadas por contentores e guindastes alternando com jardins atravessados de pistas alcatroadas e cheias de carros, armazéns transformados em comes e bebes da moda e docas repletas de iates de gente fina. É esta a nova selvajaria que sucedeu à antiga e agora existente na região, fruto da civilização avassaladora, na sua marcha impiedosa.

A coexistência pacífica, nestas coisas, não dá resultado.

Voltar atrás é impossível! Para trás mija a burra...

E não nos resta mais que acreditar no princípio de incerteza de Heisenberg segundo o qual é impossível saber, ao mesmo tempo, qual a velocidade e a posição dos electrões em volta do núcleo atómico. Ou se sabe a velocidade, ou a localização. Neste caso, mal comparado, ou se desfruta do motor veloz da civilização, ou se permanece selvagem. Provavelmente, já La Palisse, antes de morrer em Pavia, teria descoberto este axioma e ninguém sabia, mas a verdade é que ainda há por aí muita gente que não sabe...

Porque, nem com todas as petições a cinco mil assinaturas cada, entregues na Assembleia da República, em Bruxelas ou em qualquer coisa que bruxuleia por aí se conseguirá inverter o controverso processo selvagem da civilização.

Também já ninguém quer hoje voltar ao mundo selvagem puro, a não ser em imaginação! Isso seria poesia pura!

Estas piruetas peticionárias que de tempos a tempos fazem moda, tal como as providências cautelares aos molhos, fazem-me lembrar, nem eu sei por quê, um colega já de idade, um lírico saudosista que passava todo o tempo dos almoços de confraternização a dizer, a quem era forçado a ouvi-lo, que antigamente, quando era jovem, é que era bom, que se comia melhor, que se vivia melhor, que tudo eram só coisas boas na vida... Também lembro os encartados ambientalistas que lutam contra a poluição, o alcatrão e os plásticos, até na sopa, etc. Todos têm uma certa razão, dentro do seu ponto de vista. Um tradicional egoísmo, mascarado de poesia, não permite a alguns ver o panorama das dificuldades da vida dos anos trinta, para eles provavelmente inexistentes, centrada a sua atenção na perda actual de antigos privilégios. Tanto estes saudosistas, como certos ambientalistas radicais, seriam incapazes de levar uma caixa de cartão para as compras de supermercado ou abandonar a viatura onde se deslocam para realizar as tarefas mais insignificantes, muito menos cavalgar pachorrentamente pelas ruas sem alcatrão mas cheias de bosta, a apreciar os seus adoráveis panoramas selvagens...

Outro caso paradigmático de que me recordo passou-se na minha vizinhança, com um morador a recolher assinaturas e a fazer um grande estardalhaço, com entidades políticas envolvidas, contra a construção camarária autorizada de um prédio noutra rua das traseiras, o qual lhe iria tirar um pouco da vista de uma das suas várias janelas, para o Tejo longínquo. Acabou, finalmente, por desistir e mudar de residência, depois de ter chateado meio mundo.

Mas não estou contra as petições, muito menos a tomar qualquer partido por qualquer delas, ao contrário do que possa transparecer.

Fazer petições é muito poético, muito democrático, muito in para quem tem vagar ou apenas muita determinação para isso, com todo o direito que a constituição lhe concede.

Força, gentes! Entretenham-se com essas, se não têm nada mais que fazer ou sentem que é o seu dever. Apresentem as suas versões! Lutem por elas! Chateiem o poder político até à exaustão! Mas nunca levem o caso à Justiça. É muito demorada, sai cara e não resolve nada.

Eu, pela minha parte, cá fico à espera dos resultados, na certeza, porém de que não anseio pelo regresso aos tempos idos da selva querida e, pela minha provecta idade, também já não posso viajar ao espaço dos panoramas inolvidáveis. O que eu quereria, se me pedissem uma opinião, seria gozar de todos os progressos da civilização e, simultaneamente, de toda a poesia e liberdade proporcionadas pela vida selvagem, mas isso seria a quadratura do círculo. Para tal, seria mister que não fosse válida a minha adaptação civilizacional ao Princípio da Incerteza de Heisenberg, um dos pilares da Mecânica Quântica.

Entretanto, faço votos para que os mandantes da área onde resido não reduzam o panorama limitado que usufruo da minha janela para os prédios em frente, porque estou velho para andar por aí de porta em porta -ou a pagar a alguém que o faça por mim - as tais cinco mil assinaturas necessárias a uma petição. Se assim acontecer, já não será nada mau...

Até porque a Câmara, atenta aos progressos da civilização, já enterrou os contentores de lixo selvagens que havia em frente da janela da sala onde escrevo e abandalhavam o meu panorama, infelizmente sem Tejo à vista.

Pelo contrário, os contentores de Alcântara são impossíveis de enterrar.

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