O arrastar das armas
Disse um senhor general de grande estatura e prestígio nas Forças Armadas que os militares estão descontentes. Não se ficou por aqui. Falou também em injustiças várias da parte dos poderes políticos, em incompreensão da sociedade civil, em inquietação dos oficiais mais jovens, em suma, da falta de meios e de condições para exercer condignamente a profissão. Foi mais longe ainda, o senhor general L.S., dizendo, não sei se à laia de aviso ou não, que «convém não nos julgarmos blindados contra situações desagradáveis que possam vir a surgir, nem que insistamos em pensar que "acontecimentos (funestos) do passado não voltam a acontecer».
Ora, demais sabemos todos que as armas estão na posse dos militares, que as arrastaram no passado, tradicionalmente, quando as situações não lhes agradavam e às vezes dispararam balas assassinas contra os seus próprios concidadãos. Mas isso não justifica qualquer intromissão dos militares na esfera política ou judicial de uma nação democrática, por dá cá aquela palha. Pelo contrário, numa democracia para a qual aliás contribuíram, as características principais da força militar são a disciplina, a defesa da constituição, das leis do país, das populações e das instituições legalmente constituídas, no perfeito e exemplar cumprimento dos seus deveres.
Soa mal, pois, que os militares se manifestem como qualquer sindicato ou qualquer associação de interesses privados. Felizmente, depois que o Regime Democrático entrou em ritmo de cruzeiro, não se têm visto anormalidades destas, em Portugal, com a excepção de alguns passeios em grupo e outras patetices a tentar tornear, num indisfarçável arremedo, as normas vigentes sobre a proibição de greves ao pessoal das Forças Armadas.
Agora, por um processo semelhantemente elaborado, socorrendo-se de um general na reforma (?), para não haver acusações de intervenção política, vêm à Comunicação Social mandar os tais recados aos poderes públicos.
Em que país estamos nós? Em que país se julgam estes senhores, que sempre foram tratados de forma ímpar, frequentemente com regalias acima da maioria da população civil?
Ora, nesta época de crise que coloca o país em sobressalto, todos somos poucos para levá-lo a bom porto. E neste particular, onde todo o mundo aperta o cinto, os militares não são mais nem menos que o resto da população civil.
Bem sabemos todos que os regimes autoritários se viram obrigados a conceder-lhes, em determinadas circunstâncias, certas regalias e que um dos motivos principais que deram origem ao 25 de Abril, foi o célebre problema das promoções, envolvendo oficiais do quadro permanente e milicianos. Mas é justo que, nas actuais circunstâncias, os militares saibam comportar-se condignamente. Esgrimir a defesa de direitos adquiridos em alturas excepcionais ou mesmo defendendo benefícios que consideram justos, arrastando as armas, ou mandando indirectas ao governo, seja ele qual for, são seguramente actos pouco reflectidos da parte de quem tem a força, mas poderá perder algumas das razões que invoca.
Acresce que a população em geral também sabe perfeitamente que as Forças Armadas, pela sua natureza, têm recebido sempre uma fatia de leão dos orçamentos, para armamento de utilização muito discutível, para não dizer imoral, como submarinos, aviões e blindados, peças de elevado custo talvez apenas justificadas pela satisfação do ego dum elevado número de oficiais superiores, numa estrutura de comandos altamente inflacionada, qual pirâmide invertida ante o reduzido número actual de efectivos.
É evidente que não se pode ter tudo ao mesmo tempo, isto é, manter a pirâmide e o carreirismo automático sem reforma da estrutura, as promoções, as regalias extraordinárias, boa apreciação e reconhecimento por parte da população civil, e ainda material moderno caríssimo, para as nossas possibilidades. As opções deveriam ter sido feitas correctamente pelas chefias, na devida altura, sacrificando, por exemplo, alguns elefantes brancos. Prejudicaram assim, à mistura, a resolução atempada de algumas reclamações que até parecem justas.
Agora, claro que é muito mais fácil ao senhor general levantar a voz para os políticos alargarem os cordões à bolsa, lembrando simultaneamente o arrastar das armas de outros tempos...
Coisas perfeitamente dispensáveis!
Mas há mais...
Alertado pelas parangonas dos diários onde os militares disfarçadamente colocaram e publicitaram as suas reivindicações, o ministro da tutela resolveu enviar à imprensa a sua versão dos factos, lamentando o método que por eles fora utilizado. E logo «a Associação dos Oficiais das Forças Armadas (AOFA) responsabiliza o ministro da Defesa pelo facto do protesto dos militares ter saído dos quartéis». «O mesmo general na reforma, L.S., respondeu ao ministro, também na RTP, lamentando que ele não tenha aproveitado esta oportunidade para responder às exigências dos militares.»
Conclusão: As Forças Armadas têm ainda hoje, mesmo em regime democrático, alguma dificuldade em cumprir as normas impostas pelo Poder Civil, o que não tem nada a ver com a sua intocável disciplina interna.
Aproveitando a porta oportunamente aberta da Comunicação Social e tentando seguir outros maus exemplos correntes na Sociedade Portuguesa, resolveram, mais uma vez, pôr a boca no trombone, qual operação de chantagem mais própria de qualquer organização sindical ou clube de futebol, que de uma impecável organização militar....
A verdade é que, para o geral da população, já começam a ser preocupantes estes e outros sinais de agitação ou até de alguma indisciplina latente no interior da Instituição Militar, onde os parágrafos dos regulamentos e as ordens das chefias deveriam ser sagrados.
A menos que as chefias no activo, na reserva ou na reforma, venham disfarçadamente, por mandato das bases, apregoar opiniões para o exterior, para se justificar ou mandar recados para a Praça Pública, em vez de utilizarem as vias normais e legais postas à sua disposição.
É o que parece acontecer, pois é evidente que não se trata de simples picardias de recrutas.
Só faltava mais esta!
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