Vacas à solta é o que mais há por aí. Os proprietários soltam-nas para pastarem no campo, poupando ração e trabalho e dando aos animais a possibilidade de respirar o ar puro da liberdade que enrijece os músculos e dá saúde. No Alentejo, quando se passa, na autoestrada, olhando sorrateiramente para os campos circundantes, lá se avistam as vaquinhas pastando placidamente, ou repousando no chão, de preferência à sombra de algum chaparro, a ruminar o pasto previamente colhido.
É um regalo! À distância, o viajante imagina logo um pintor romântico a pintar a cena bucólica, toda belezas, toda flores e verduras, toda paz e harmonia, sem cascos imundos, sem moscas incómodas nem bostas, nem cornos agressivos, animais limpinhos, acabados de tomar banho, anafados e respeitadores das ordens do cão ou do guardador, de vara ao ombro, meio distraído, apalermado pela paisagem...
Mas também a liberdade das vacas tem as suas regras. Por maiores que sejam os campos onde são postas a pastar, as vaquinhas têm que respeitar as cercas que se adivinham ao fundo, ou a vala limitadora, o ribeiro ou o canavial estratégico, etc.
Mesmo assim, de vez em quando, lá se escapa um animal da sua prisão dourada, fugindo à obrigação imposta de dar os litros de leite à população insaciável, e o lucro respectivo ao dono. Essa história de ser espremida diariamente, à mão ou à máquina, com requintes de malvadez, em proveito dos outros, a troco apenas da manjedoura de emergência deve naturalmente cansar a mais paciente das vacas.
Vai daí que, esta madrugada, uma delas se escapuliu do cercado e resolveu experimentar a autoestrada, rumo a parte incerta. Cedo deve ter verificado que as autoestradas não tinham sido feitas para uso das vacas, mas teve pouco tempo para raciocinar. Aliás, o raciocínio das vacas é lento como elas que só sabem dar leite e ameaçar mansamente com os cornos, nos quais já ninguém acredita.
Um automobilista viu o animal cruzando inesperadamente à sua frente e só teve tempo de meter os travões a fundo e fazer uma curva perigosa que não teve maiores consequências que um susto de coração à boca.
Mas a mesma sorte não teve um segundo automobilista que vinha um pouco atrás, com a vaca assustada a deambular no meio da via, de cornadura baixa à procura do eventual inimigo. O carro e a vaca fizeram o respectivo ataque frontal em que a leiteira esteve toda do lado do condutor. Salvou-se, com um ligeiro ferimento, apenas. E a vaca não teve sorte nenhuma, acabando os seus dias e, pior ainda, deixando de prestar serviço ao seu esperto empregador que deve andar pelos campos, a esta hora, desvairado, à sua procura. Está certamente na hora da ordenha e faltam ainda quinze litros para a conta certa do contrato de entrega diária...
Chegaram então os funcionários da Brisa e os agentes da polícia para retirar o corpo do animal morto, investigar o brinco da orelha, limpar a via e repor a normalidade da circulação Veio também logo, a correr, o jornalista de serviço para relatar, repetida e enfaticamente umas quantas vezes, o acontecimento bombástico, para o noticiário mais próximo. E apareceram ainda, como de costume, os mirones a empatar tudo e todos.
No fim, o automobilista nem sequer precisou de ir ao hospital, embora tenha que levar o carro ao bate-chapa. Ele nem queria acreditar no que lhe tinha acontecido. Tivera uma leiteira dos diabos! Que vaca!
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