segunda-feira, 6 de outubro de 2008

À CAÇA DA CRISE II


Discurso, recados e futebol

Ontem escrevi um artigo, dando conta da abertura da época de caça, precisamente a 5 de Outubro, com os caçadores a comemorar a data com tiros de caçadeira e cachorros amestrados, fazendo ouvidos moucos às pífias e rotineiras comemorações oficiais.

Relendo agora o texto descarregado com o seu quê de pesar íntimo e fazendo uma sátira amarga da desvalorização continuada dos valores pátrios, verifiquei que expressara, no final, a ideia de que a imprensa iria dar mais importância a esse facto que às comemorações da data de Implantação da República. Falhei no meu tirocínio para oráculo, como vou demonstrar.

Às vinte em ponto, lá fui sentar-me no sofá, de comando em punho, apontando para o início, com resumo, dos noticiários dos vários canais, até assentar num deles. Optei pela TVI porque, mais tarde, como é hábito, reveria as notícias na RTP 2 ou na RTP Notícias, e posteriormente ainda na SIC Notícias, ficando com uma ideia mais completa e correcta de tudo o que é apresentado. Hoje, logo de manhã, fui presenteado, nos vários canais noticiosos, com a repetição de muitas das notícias da noite, e os títulos dos matutinos.

Pude constatar, pois, logo às oito da noite, que me tinha enganado nas previsões que emitira no meu artigo da «Caça à crise», em que antecipara o empolamento do início da caça.

As preferências das estações de TV foram, nesse horário, para o discurso do Presidente da República, a descoberta imediata de recados, nas suas linhas e entrelinhas, as apreciações superficiais, partidárias e tendenciosas dos representantes dos partidos políticos apanhados na passada, os comentários e conclusões apressadas e abusivas para todos os gostos. Coitado do Presidente, transformado agora em Zé dos recados! Quase de certeza tinha preparado um discurso bem esgalhado para todos os portugueses e foi logo aproveitado e glosado pelos do costume, antes mesmo que a poeira assentasse...

Quanto às comemorações, cada vez mais reduzidas e esquemáticas, não passaram da trivialidade que já vai sendo habitual, tanto na realidade como nas notícias apresentadas.

No entanto, uma ideia de me pareceu interessante, neste 5 de Outubro, a exaltação já tradicional nesta data, do patriotismo e do espírito cívico dos cidadãos, com a autorização da visita do público ao Palácio de Belém, com o Casal Presidencial a colaborar activamente, desta vez.

À tarde, dando um passeio de carro pelas imediações da Praça do Império, sem conseguir, após várias deambulações e pesquisas infrutíferas, um mísero lugar de parqueamento, pude apreciar a razoável quantidade de gente que se aglomerava nas proximidades do Palácio Presidencial e também debruçada das varandas do respectivo jardim, com nítida predominância dos velhotes. Fiquei com pena de não poder fazer o mesmo, até porque já estou incluído nesse grupo etário. E fazer a minha reportagem fotográfica da ordem.

À maioria dos jovens e das crianças certamente se apresentaram, nesse dia magnífico, outras apetências.

Voltando, aos noticiários da noite, pude apreciar a nítida mudança de tema e de espaço que ia ocorrendo com o passar das horas, porque outros valores mais altos se alevantavam, para além das fracas comemorações do 5 de Outubro e do correspondente discurso com os tais recados à vista. E assim, duas horas depois, as honras da casa já iam todas para o futebol e o extraordinário mobilizador de audiências que foi o Sporting-Porto, ainda para mais com a vitória dos forasteiros pelos quais, depois da enorme derrota com o Arsenal, já ninguém, em Lisboa, dava um chavo. Num instante, vi eu também, o Porto passou de vítima sofrida a algoz e o Sporting, de vencedor antecipado, a condenado às profundezas dos infernos. Todas estas situações foram exploradas ao pormenor, por todos os canais, a partir das dez da noite, até de madrugada e hoje, logo de manhã, eram o prato forte do dia, de modo que estou quase a ficar um perito nestas matérias, à força de ser obrigado a ver, a ouvir e a ler...

A imprensa escrita dava abundante espaço a este tema, propagando ainda mais o desajustamento que se verifica entre as realidades amargas do dia-a-dia da maioria das gentes e o sonho dourado de uns quantos. Os destaques das primeiras páginas dos matutinos vão todas, pois, para o grande desafio, com as fotos dos craques, os títulos bombásticos e falaciosos que fazem as delícias de jornalistas e muito público, certamente também fazendo vender jornais, num país de fraca literacia, que só vê a bola, as fotos dos seus ídolos e apenas lê as letras gordas ou as fofocas mais triviais!

Senti, de novo, a tentação de ir à caça da crise, por aí fora, fazê-la sair dos esconderijos onde se esconde, mostrá-la em tudo quanto é sítio, publicá-la à força. Não é assim tão fácil, como parece.

Numa infindável série de anacronismos que salta à vista, mais uma vez é caso para perguntar onde está ela, de que tanto se fala mas que é relegada para as páginas interiores dos jornais, essa crise internacional e nacional que em Portugal desaparece por entre as caçadas, com simples licença a 60 euros e armas e munições de muitos milhares, as bancadas dos estádios de 30, 60, ou 120 euros por desafio, as discotecas cheias nas noites de forrobodó, os carrões às portas de casas a fingir e uns quantos desfiles de modas...

Prevejo, no entanto que, muito de mansinho, ela chegará em força e fará esquecer todas estas pepineiras em que tantos passam o tempo e gastam o que não têm. Mas não será tão fácil de matar a crise como o coelhinho desprevenido que vai parar à mesa do caçador.

Oxalá falhe, de novo, este meu segundo tirocínio para oráculo de serviço.

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