sábado, 4 de outubro de 2008

QUINTA-FEIRA BRANCA


Depois da sexta-feira negra

Segundo os matutinos, não houve mortos nas estradas portuguesas, na última quinta-feira. Aleluia!

O acontecimento deveria ser eternamente repetido e festejado, pedagogicamente falando, por toda a imprensa nacional.

Desde que me conheço, nunca dia algum havia terminado sem morte, nas nossas vias de circulação rodoviária. É caso, pois, para festejar. Recordo, por exemplo, os repetidos acidentes mortais das rectas de Pombal, de Pegões, do Porto Alto e as célebres curvas do Mónaco e da Ota. E, quanto a curvas, nem vou citar mais nenhuma, porque eram tantas nas estradas portuguesas de 60 e 70, que o difícil era encontrar as rectas.

Todo o mundo pensava, nessa altura, que a culpa de tantos acidentes era das estradas malvadas, dos maus traçados, do péssimo piso e da pior sinalização. Também alguns atiravam muitas culpas para cima dos peões despreocupados, imprevidentes ou borrachos.

Mas por que era que o condutor nunca tinha a culpa e apenas se culpava o peãozito, coitado, que não fazia mal a ninguém?

Foi então, com o aperfeiçoamento dos detectores e medidores do álcool no sangue, que se descobriram os condutores alcoolizados e começou a atribuir-se lhes a maioria das culpas pelos acidentes ocorridos.

Seja como for, hoje, apesar da construção de milhares de quilómetros de auto estradas seguras, sinalizadas e sem curvas, as mortes continuam a afligir o nosso dia a dia. Claro que os carros, cada vez mais seguros também, são cada vez em maior número e circulam a velocidades sempre maiores, quase sempre acima dos limites impostos pelo código e pela sinalização.

Mas qual é o motorista nacional que os cumpre? E passam, assim, o tempo a dizer lá para com eles:

- Se os outros não cumprem, por que hei-de eu cumprir também?

-Esses fulanos que colocam as limitações de velocidade são malucos, não percebem nada disto, nunca vêm ao terreno verificar a justeza das suas determinações.

-Aqui mesmo, neste ponto, não se justifica esta limitação!

-E por quê os 120 nas auto estradas? Na Alemanha, por exemplo, não há limite de velocidade nas auto-estradas...Mas aqui há e, mesmo assim, ocorrem acidentes mortais a cada passo. Por quê?

- Porque alguns condutores são maçaricos que tiraram a carta por correspondência, ou velhotes «chéchés»...

Noutro dia, descobri na estrada um português que cumpria rigorosamente os 90 impostos pelo sinal limitador. Caso raro, raríssimo.

Consegui descobri-lo facilmente, embora nunca me tivesse passado antes pela cabeça. Ia eu muito entretido à conversa com a minha mulher, quando o marmanjo se me pespegou à frente, nas calmas, sem me deixar passar ao menos, apesar de ter feito sinal de luzes.

-Chato, quase gritei eu, vai pisar ovos, condutor de domingo!

Eu levava os vidros do carro todos fechados e o tipo não ouviu nada, de certeza absoluta.

Buzinei então uma e outra vez, sem que ele se desviasse um milímetro. O fulano não encostava à berma suficientemente, e a estrada era estreita para me atrever a ultrapassá-lo, em segurança. Logo a seguir, o traço contínuo iria impor-me a proibição de fazê-lo.

Olhei pelo espelho retrovisor e verifiquei que já uma pequena fila de automóveis seguia atrás de nós e aumentava a cada minuto que passava. Até que, de novo apareceu a linha tracejada e um coro de buzinadelas se fez ouvir, sem que o pasmado acelerasse ou se desviasse o que quer que fosse. Disse para a minha mulher:

-Nabiças como este, deveriam ser proibidos de conduzir em estrada!

Era de mais. Afastei-me um pouco dele, por precaução, não fosse dar-lhe na cabeça de travar e diminuir ainda mais a marcha, o que seria um perigo, dada a pouca distância a que me encontrava, e os restantes carros igualmente, dos respectivos carros da frente. E, nesse mesmo instante, o carro que me seguia, ultrapassou-me e meteu-se rapidamente no buraco que eu havia feito, quase me roçando no guarda-lamas. Fiquei sem pinga de sangue, mas logo me passou a adrenalina e abrandei a marcha, ligeiramente, por precaução.

A minha mulher recomendou-me calma mas, nesse mesmo instante, outro carro me ultrapassou à justa, metendo-se no espaço que de novo havia deixado livre, e a cena foi-se repetindo uma e outra vez, até haverem ultrapassado todos os que vinham atrás de mim. O último deles, por certo irritadíssimo com a demora, decidiu ultrapassar-me e ao carro da frente, de uma vezada, e por centímetros não se enfiou num camião enorme que vinha em sentido contrário! Um pouco mais adiante, tinha início a terceira faixa!

Olhei então para o conta-quilómetros e verifiquei que o estranho «nabiça» cumpridor do código vinha precisamente em cima dos 90! E acabava de dar-me uma grande lição de cumprimento das obrigações, de prudência, coragem, paciência e estoicismo, ante a agressividade dos outros apressados utilizadores da estrada.

-Afinal, o tipo que ali vai é que tem razão; segue à velocidade máxima permitida! E eu que pensava que ele ia mais devagar...Mas a verdade é que não nos apercebemos, na maioria das vezes, de que nós próprios corremos de mais...provavelmente porque não ligamos nenhuma aos sinais limitadores e achamos sempre que apenas se destinam aos outros.

Deixei-me ficar na peugada do condutor prudente e corajoso que continuava à minha frente e não tentei mais ultrapassá-lo, embora sentisse, de vez em quando, uma forte tentação de fazê-lo.

Olhei, nesse momento para o lado, para um pequeno carro, de baixa cilindrada, que fazia um danado esforço para me ultrapassar. Abrandei um pouco para lhe facilitar a vida e recebi um brinde:

-Nabiça! Palerma! Vai dormir para a tua parvónia!

E lá foi, todo inchado, todo lampeiro, todo realizado, a atacar o carro da frente.

-Deixa lá! -disse logo a minha mulher a tranquilizar-me. Vale mais ir devagar e chegarmos inteiros a casa!

Muitos não chegam, é verdade.

Por isso penso que devíamos comemorar a sensatez, a alegria da falta de vítimas desta quinta-feira branca, em vez de nos entretermos a ultrapassar e a chorar depois as vítimas de tanta sexta-feira negra, início fatídico dos fins-de-semana mortais tão ansiados por meio mundo. E dos restantes dias da semana.

Penso que devia ser erigida uma estátua de homenagem ao automobilista cumpridor do Código da Estrada, exemplo vivo de coragem silenciosa e ao mesmo tempo vítima estóica da prepotência dos restantes condutores, como já disse.

Mesmo que só exista o que eu encontrei naquele dia, ou uns quantos mais...

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