terça-feira, 21 de outubro de 2008

COMBOIO A DUAS VELOCIDADES

Em marcha-atrás
«É "injusto e imoral" o aumento do fosso entre ricos e pobres em Portugal, segundo um estudo divulgado pela OCDE.
«Portugal é um dos países da Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Económico (OCDE) com maiores desigualdades na distribuição dos rendimentos dos cidadãos, ao lado dos Estados Unidos e apenas atrás da Turquia e México.
«No seu relatório "Crescimento e Desigualdades", hoje divulgado, a OCDE afirma que o fosso entre ricos e pobres aumentou em todos os países membros nos últimos 20 anos, à excepção da Espanha, França e Irlanda, e traduziram-se num aumento da pobreza infantil.»
Ora este relatório não veio trazer nada de novo ao que as populações, em todo mundo, salvo raríssimas excepções, já haviam constatado, sofrendo na pele os efeitos de um sistema financeiro e económico desumanizado, liberalizado e, o que é pior, libertino e generalizado à maioria dos países.
É uma miragem, como foi demonstrado pelo falhanço da aplicação das teorias de Marx e discípulos, acalentar a igualdade de bens entre pessoas de diferentes capacidades físicas ou mentais, mas é um dever moral inquestionável prover todos os seres humanos do absolutamente necessário a uma vida digna, independentemente de sistema económico e tendência política ou religiosa.
O crescimento da economia, imposto actualmente como norma, é cego, mas terá que ser regulado, sob pena de termos os países de todo o mundo a evoluir, económica e definitivamente, a duas velocidades.
Na Europa, na América e até já na China, há cada vez mais gente a utilizar a alta velocidade, quando o congestionamento dos aeroportos não permite a utilização dos jactos particulares. Não contesto. Porém, há também cada vez mais gente a aguardar a chegada do recoveiro, o que não deixa de ser um contrassenso.
Nas estações de caminho de ferro cheias de luzes e passadeiras rolantes, cada vez são mais visíveis, nos dias de hoje, os que dormem nos bancos. Muitos já não terão qualquer possibilidade de apanhar mesmo comboio recoveiro, aguardando ali, pacientemente, dia após dia, a chegada do coveiro.
Voltando às estatísticas. Elas são uma coisa útil e, ao mesmo tempo, engraçada, porque nos colocam diante de realidades da vida bem diversas, algumas com que exultamos, outras de que muitas vezes não gostaríamos de ter sabido. Simultaneamente, deixam-nos a liberdade de fazer delas o que nos apetecer, isto é, de levá-las a sério, umas vezes, outras de interpretá-las segundo os nossos interesses, outras ainda de fazer pouco delas, ou até de não lhes ligarmos nenhuma e metê-las no lixo!
Mas frequentemente as estatísticas deveriam ser ordens, em vez de motivo de risota. E, no entanto, apesar de todo o seu interesse científico, para que servem as estatísticas a um pobre, a uma criança que morre de fome, se não agimos em conformidade?
Nesta época de finança fria e cruel a comandar uma economia mundial cada vez mais cheia de estatísticas preocupantes e de distorções aberrantes, haverá tempo para pensar no pobre que não quer saber nada disso, que aguarda apenas, deitado no vão da escada ou no banco da estação, a chegada do coveiro?
Desta vez, as estatísticas da OCDE vieram «descobrir» o que era uma verdade de La Palisse aos olhos de todos, o aumento do fosso enorme existente entre os que tudo têm e os que não têm nada, entre os que recebem milhões com um aumento de 1% e os que recebem centavos com um aumento de 20.
Que países riquíssimos, como os Estados Unidos, estejam no topo, quanto às desigualdades sociais, é altamente injusto e imoral, como diz o relatório. Isso, contudo, que não lhes importa a eles um pepino, não pode servir-nos de consolação a nós, como alguns sugerem ou até pretendem copiar.
É que Portugal aparece também no topo das desigualdades, e é apenas um país de pobretanas onde uns quantos nababos se entretêm displicentemente a fazer caretas ou deitar a língua de fora aos que já não conseguem esboçar um sorriso, nem força têm para a guardar na caixa. Pior do que isso, é que esses engraçados que voam cada vez mais alto, crescem à custa do afundamento dos desgraçados que desprezam e que se esforçam por meter no vagão jota, em marcha-atrás! Coisas do passado, mas sem direito a repetição.
O desequilíbrio de ordenados e benesses entre estes dois pólos da população portuguesa é, como foi dito, um verdadeiro atentado à justiça e à moral, mesmo antes de saber a «descoberta» evidente das estatísticas da OCDE. Mas, mais chocante ainda, é constatar que alguns destes senhores de topo são funcionários ou gestores da contabilidade pública, cujo erário sai da bolsa de todos!
Ora nenhuma oportunidade melhor que esta, de grande crise financeira e económica, para tratar de regularizar algumas destas irregularidades mais gritantes que ficam mal, mesmo em tempos de vacas gordas. A Administração Pública deveria intervir, a regularizar e moralizar mais este aspecto negativo de capitalismo selvagem e desumano.
Há dias, o gestor da TAP resolveu, de moto próprio, baixar em 15% o seu próprio ordenado milionário, no próximo orçamento da empresa. À falta de melhores leis, este exemplo bem poderia ser seguido por muitos gestores públicos...e até privados. Seria um vislumbre de moralidade esquecida, não suficiente para estreitar o fosso que existe nos dois extremos da sociedade portuguesa, mas talvez impeditivo do seu desbragado alargamento, e serviria de alguma ajuda a muita gente que começa a descrer que o sol, quando nasce, é para todos.

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