quarta-feira, 29 de outubro de 2008

BAIXAS E ATESTADOS


As fraudes ao fundo

Antes do 25 de Abril, um atestado médico era uma coisa séria, embora já para o fim do regime, com o uso e o abuso cada vez mais frequentes, a seriedade começasse a descambar para o torto, coisa que veio a acentuar-se com o regime democrático, ao contrário do que seria de esperar. Não quero dizer com isto que as ditaduras são melhores que as democracias, mesmo em Portugal onde tiveram fortes raízes, até quase aos nossos dias.

O controlo dos cidadãos e das suas actividades sempre foi uma tentação dos governos, em qualquer parte do mundo, mas só efectivada pelos regimes ditatoriais ou aparentados, onde faltam os órgãos de vigilância que a democracia inventou e aperfeiçoou para uso interno.

Ora alguns desses controlos do antigamente eram efectivos, miudinhos e, ao mesmo tempo, caricatos.

Alguém se lembra ainda de que eram precisas duas testemunhas presenciais que conhecessem o próprio, para que a sua assinatura fosse reconhecida num notário? Pois a coisa traduziu-se, ao fim de alguns anos, à permanência de dois oportunistas à porta de cada cartório, ou seja, duas testemunhas encartadas e sempre disponíveis a troco de cinco escudos cada, que assinavam e atestavam no documento que conheciam o assinante, qualquer que ele fosse, conseguindo assim o reconhecimento pelo notário. Ora este, sabendo muito bem o que se passava, cumpria rigorosamente com o preceito legal e reconhecia, sem dúvidas nem objecções de última hora.

Também nas segundas chamadas dos exames era exigido atestado médico justificando a falta de comparência do aluno, por doença, ao exame normal. Claro que em breve o atestado se transformou numa banalidade, não mais importante que o simultâneo requerimento em papel selado com assinatura sobre um selo de cinco escudos, e tudo algumas vezes aproveitado por alguns funcionários que tinham a papelada feita e o selo já lambido, a troco de uma miséria...

Outros casos como estes poderiam ser enumerados até encher páginas, e deixar-nos a rir por um bom bocado. No fundo, nada disto dá vontade de rir. Faz parte de uma certa maneira de estar do povo português, bonzinho, permissivo, laxista, esperto nos intervalos, dando sempre a volta à legislação que não grama e que só cumpre à força por obrigação ou medo da autoridade e não por dever cívico.

Chegado o 25 de Abril, seria de esperar que os portugueses, civicamente, sem empurrões nem cacetes, cumprissem tranquilamente as leis feitas por eles próprios, isto é, pelo Parlamento que escolheram para o efeito.

Mas isso seria teoria pura. Seria bom de mais.

A democracia quase acabou com o analfabetismo, deu acesso ao ensino e à saúde a toda a população e nem assim conseguiu dela um mínimo de esforço cívico voluntário, para mudar vícios ancestrais, quer dizer, o cumprimento das leis pelo medo, seja de infligir as regras da Igreja, seja de sofrer a violência do poder familiar, militar, político...O profissionalismo e a responsabilização livre e democrática ainda não levaram a melhor sobre essas tradições.

Inesperadamente, também a esperteza saloia não regrediu, antes se refinou, nos tempos que correm.

Uma notícia de hoje dá conta de que cerca de trinta por cento das baixas médicas ao trabalho, por doença, ou seja, umas 70.000 são fraudulentas, o que acarretou para o Estado, de Janeiro a Setembro, um prejuízo de 37,7 milhões de euros!

Claro que todos pagaremos uma quota-parte dessa importância, mas alguns desvalorizarão, dizendo caricaturalmente que o Estado tem obrigação de pagar as baixas, coitadinhos dos que precisam. Acham ainda que não deve castigar os faltosos, mas antes tirar dinheiro aos ricos e poderosos para dar aos pobres, como o Zé do Telhado.

Ora eu pergunto a mim próprio, como pode ser viável o progresso dum país com 30% de baixistas fraudulentos, suportados, ainda para mais, em atestados médicos passados sobre o joelho... Porque a baixa só é fraudulenta, porque o atestado médico obrigatório e justificativo é fraudulento no seu conteúdo.

Estou já a ouvir as diatribes da Ordem dos Médicos, clamando que os clínicos não têm culpa nenhuma e que, no mínimo, são enganados pelos funcionários que a eles recorrem, etc., mas na minha óptica, um médico que passa um atestado de conteúdo fraudulento só pode ser, para evitar o tratamento de conivente na fraude, uma de duas coisas: oportunista ou ignorante.

Estou a lembrar-me de outra situação caricata que ocorreu há algum tempo com os alunos que, por uma embirração qualquer com o Ministério da Educação, resolveram fazer greve ao exame, numa cidade de Província, e meteram o atestado de doença, para serem admitidos à segunda chamada. E assim, mais de quinhentos alunos justificaram estrategicamente, com atestados «fraudulentos», a sua falta à primeira chamada do exame escrito, num bonito dia de sol. Tinham adoecido... no papel.

Pois a caricatura da situação não terminou aqui. É que a Ordem dos Médicos só se propôs actuar contra os clínicos que eventualmente viessem a ser condenados em tribunal, isto é, em vez de punir ou, ao menos, aconselhar os seus inscritos à honestidade proposta no juramento de Hipócrates, teve para com eles uma atitude altamente hipócrita.

As palavras até são muito parecidas, mas diametralmente opostas!

A intenção do Ministro do Trabalho e da Segurança Social, de deitar as baixas ao fundo, recorrendo a inspecções com juntas médicas regulares, cada vez mais frequentes, é louvável, mas é uma tarefa maior que a de Hércules, ante a Hidra de Sete Cabeças. No mínimo, vai ter que cortar as cabeças todas, para que não renasça.

Será coisa demorada. Infelizmente para nós, Portugal continuará a ser, com tais comparsas e por uns anos mais, um Paraíso à beira-mar plantado, no que a baixas fraudulentas diz respeito. Em vez de sê-lo por bons motivos!

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