Só fui tropa episodicamente, durante três meses em que nem uma só noite dormi na caserna. Fui, nesse sentido, um privilegiado, não por razão de qualquer cunha, mas porque os dias que antecederam o 25 de Abril e os que se lhe seguiram assim o determinaram, pois havia ficado isento de Serviço Militar, vinte anos antes! Primeiro passeei até ao Convento de Mafra e depois até aos Sapadores de Campo de Ourique, ao Hospital Militar da Estrela e ao Laboratório Militar, nos Olivais. Para além dos transtornos profissionais, foram três meses bem passados a conhecer alguns pormenores da organização, a dar meia dúzia de tiros de pistola Walter e de G3 contra uma barreira, fraca precaução para uma eventualidade, pois me destinavam a um posto de controlo, aquisição e distribuição de medicamentos às Forças Armadas, numa qualquer capital de distrito de Província Ultramarina.
Foi assim que assisti a muitas formaturas e toques de reunião, de formatura, de sentido, de destroçar, à vontade, ao rancho…Mas havia muitos, muitos outros toques para todos os gostos!
Quando era novo, embora já estudante universitário, residi uns quatro ou cinco anos na Calçada da Ajuda, a rua dos quartéis, como eu lhe chamava, começando com a cavalaria da GNR, logo ao cimo, em frente ao Palácio, e seguindo com o Mertalhadoras ou Infantaria 1, o Lanceiros 2, quase em frente e, ao fundo, o Cavalaria 7, com o seu armazém de blindados! E, logo abaixo, ficava o Palácio de Belém. Numa rua transvesal, a uns escassos duzentos metros da Calçada da Ajuda, na Calçada da Boa Hora, situava-se ainda um Hospital Militar!
De modo que, com a minha casa situada quase a meio da calçada, podia apreciar, quer quisesse ou não, os diversos toques com que a rapaziada aquartelada se entretinha, no ensino e na prática da disciplina de ferro, via toque de corneta. Nos intervalos, ouvia o treino, os ensaios dos tirocinantes a corneteiros dos diferentes regimentos e, como se isso não bastasse, uma vez por outra a Guarda Nacional Republicana descia, a cavalo, a Calçada, com a fanfarra em pleno, afinando o estilo para a cerimónia de recepção a um qualquer embaixador em primeira apresentação à Presidência da República.
Mas, a certa altura, embora a princípio achasse graça e depois fizesse um esforço sobre humano para ultrapassar a festa, comecei a ficar farto!
Nunca mais voltei a ouvir tantos toques na minha vida! Nem em Mafra, apesar de ali, uma vez por outra, o carrilhão dar o seu concertozinho para turista, exercitando simultaneamente os ouvidos e os punhos de um organista entendido a bater nos martelinhos do órgão monumental.
Finda a minha aprendizagem de tropa, regressei aos toques de outra música mais suave, pensava eu.
Aos poucos, fui-me desenganando. A música clássica dos tradicionais instrumentos de sopro e de corda depressa ficou soterrada pelo toque agressivo dos bombos e das pandeiretas, dos sons bizarros das marimbas, das latas, do reco-reco, e das esquisitas formas de tocar dos saxofones, dos trompetes, dos pífaros, das ocarinas e até das mirabolantes violas eléctricas de formas e afinações bizarras…
Também nunca vira tanta variedade de instrumental na minha vida. Certamente, quem quisesse agora descrever, apreciar o toque, ou contar todos os instrumentos de música mostrados a torto e a direito e actualmente em uso, ver-se-ia grego!
Isto, para não falar dos toques polifónicos de telemóvel que nos apanham em qualquer lugar, estejamos acordados, com dor de cabeça ou bem dormidos. Mas também há toques silenciosos, como os dos médicos, que só se fazem sentir quando gritamos de dor…ou ficamos sem nada na carteira.
A televisão tornou-se o veículo de toda esta transformação musical e um perfeito repositório de toques para a posteridade, a começar nos toques de chapa na Segunda Circular tão frequentemente apresentados no pequeno ecrã.…
E não só!
À medida que desaparecem da «pantalla» os desfiles do passado com as suas cornetas, os concertos de Música Clássica com toda a sua panóplia de aparelhos e toques, aumentam os toques de martelada, os toques de ferros, os toques de disparo de pistola das polícias e de canhão dos guerreiros activos em qualquer guerra, o rebentamento de bombas da Al Qaeda e o toque a que já ninguém liga, do arranque dos aviões a levantar voo ou a aterrar com os VIPs de serviço…
E, nos intervalos de todos estes toques televisivos que por natureza já são poucos, um desgraçado que se aventurasse e não mudasse prontamente de canal, arriscava-se, algum tempo atrás, a ouvir as três pancadinhas de Molière no início de alguma desengonçada peça de teatro, coisa que se foi quase definitivamente com o aparecimento das novelas. Estas não fazem a cerimónia de um qualquer toque para se anunciar, mas especializaram-se em toques para todos os gostos, como o toca a andar, o toca e foge…
Ainda sinto, de vez em quando, saudades de certos momentos da TV, com o Vilaret a recitar, por exemplo, na sua voz musical e ritmada, «o jumentinho pela estrada plana, toque, toque, toque…»
Já vai longe o tempo.
Agora o que está a dar, na televisão, depois de uma época falhada de entrevistas e discursos a que ninguém liga, são o toque de bola e o toque xó à portuguesa!!!
Sem comentários:
Enviar um comentário