A morte das tradições e as tradições de morte
A pouco e pouco algumas dessas iguarias tradicionais vão perdendo o seu sabor original, à medida que a industrialização vai igualizando tudo, aplicando os seus corantes, conservantes, acidificantes, antioxidantes, edulcorantes, estabilizantes, etc.… conduzindo-nos ainda a uma dieta rica em ómega 3, vitaminas, aminoácidos essenciais, quase sem sal, quase sem gordura e sem colesterol…
Mas os olhos também comem! Para quem vive na cidade, e é já a maioria dos portugueses, ir ao supermercado é uma tentação, muito mais fácil e económico que ir à Terrinha para trazer os chouriços, as alheiras e farinheiras, as morcelas, os presuntos, os paios, os queijos e tantas outras coisas que agora nos chegam das fábricas às carradas, com selo de certificação e tudo! E já nem falo do bolo-rei que acabou com o brinde tradicional por causa da reclamação dos dentes partidos, leva aspartame em vez de açúcar e até é válido por quinze dias!
Mas não podemos dizer apenas mal dessas modernices. São higiénicas, trazem a composição agarrada (mesmo em termos energéticos!) e estão mesmo ali à mão de semear, em qualquer altura, isto é, em qualquer época do ano, que o tempo da fruta da época já lá vai!
Afinal, bem vistas as coisas, o Natal é quando o homem quiser! Ou a mulher!...
A propósito, recordo o primeiro Natal que passei com a família, num país situado nos trópicos em que, após o almoço terminado com frutos exóticos, fui com mulher e filhos até uma praia de água morninha, com um sol esplêndido, eu que nunca havia ultrapassado a tradicional passagem da consoada sentado à lareira ou ao radiador, comendo castanhas assadas e ouvindo histórias da carochinha, se não acontecia fazer alguma oração pelo meio ou ir à missa do galo, com um frio de rachar…
Muitos Natais acabei tostando ao sol e, quando já tinha quase estabelecido para a família uma nova tradição, eis que faço o regresso a Portugal, a uma readaptação conveniente, mas difícil. As tradições deste Cantinho, passados esses anos, já não eram bem o que eu conhecia! E, algum tempo depois, vieram os hipermercados e os centros comerciais dar cabo do resto!
Quase. Felizmente, ainda existem uns quantos resistentes ao fecho da porta e, ultimamente, assiste-se a uma tentativa de reabilitação das tradições. Nem sempre, porém, pelos bons motivos.
E assim, a morte dos touros em Barrancos tem sido trazida à liça e, por falar em certas selvajarias tradicionais ainda em uso, que ninguém se atreva a decretar a matança do porco, com a sua barbaridade, o seu ritual de faca e alguidar, o seu eco trágico pelas quebradas, acompanhado das risadas brutais dos matadores antecipando já as febras afogadas na pinga… Quem assim legislar perderá, certamente, as eleições seguintes. Os autarcas, tão ciosos que são das suas tradicionais prerrogativas na defesa dos fregueses, estão bem caladinhos!
Ontem, fui acordado da minha pasmaceira por uma notícia espectacular, daquelas que fazem os jornalistas gastar muitas páginas, apesar da carestia do papel e até de haver outras muito mais importantes. Numa aldeia de Trás-os-Montes, a junta de freguesia local pugna pela manutenção de uma tradição, lutando contra o país inteiro, isto é, contra a lei de proibição do tabaco recentemente aprovada, nos dias 5 e 6 de Janeiro.
Às ortigas, pois, a famigerada lei! Manda a Junta de freguesia! Naqueles dias, as crianças podem e devem fumar para manter a tradição! Se esta «tradição» pega, por aí fora…
«Segundo a edição desta segunda-feira (7) do jornal Público, que cita algumas crianças da região, uma criança de oito anos admitiu ter fumado 23 cigarros nestes dois dias. Outra, de onze anos, também citada pela mesma publicação, afirma ter fumado dois cigarros, e esperava que o pai lhe oferecesse mais tabaco.
Num outro testemunho, também citado pelo Público, uma criança de dez anos afirma ter fumado dez cigarros e ter tido algumas tonturas quando experimentou fumar um charuto.
De acordo com a tradição da Festa dos Reis, em Vale de Salgueiro, todas as crianças acima de cinco anos estão autorizadas a fumar por ocasião desta celebração».
É melhor ficar por aqui.
Palavras, para quê?
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