domingo, 14 de setembro de 2008

TRADIÇÃO E BRANDA CULTURA

A autoridade, a denúncia e a pena


Logo de manhã, fui depositar o lixo no ecoponto e verifiquei, como de costume, que parte dele era abandonado desleixadamente na rua, num espectáculo deprimente. Igualmente aumentavam as pinturas psicadélicas feitas a spray nas paredes dos prédios vizinhos e na escadaria pública de acesso à rua principal.

Como sempre me acontece nestas situações, fiquei uns momentos parado, magicando sem saber o que fazer. Dar parte à polícia, seria tempo perdido, que ela tem assuntos muito mais importantes que fazer, e participar à Junta de Freguesia ou à Câmara Municipal só teria como resultado uma palavra de agradecimento pelo aviso e de reprovação pelo desacato. Consequências práticas, nenhumas!

Desta vez, enchi-me de brio, falei com os vizinhos do meu prédio de apartamentos e confrontei-os com o que tinha visto. Pareceu-me que tinham, todos, opinião precisamente igual à minha: era necessário fazer qualquer coisa, mas não sabiam como. Por isso não iriam fazer nada!

O pior é que esta inércia de conformidade ou não decisão, este défice de cidadania à escala de rua pode ser transposta, sem erro nem exagero, para uma Junta de Freguesia, uma Câmara, as Autoridades Político-Administrativas do País inteiro, a propósito de tudo e de nada, como resultado duma apatia total das gentes perante o que se passa à sua volta, da sua incapacidade para resolver os problemas sem esforço. E, desse modo, a posição mais fácil é encolher os ombros, que a resolução dos problemas deve pertencer a uma autoridade qualquer ou a outra mais acima, e por aí fora.

O que não se sabe resolver, resolvido está!

Numa das minhas deambulações por essa Europa, em automóvel, tive ocasião de observar a diferença abissal entre as mentalidades dos habitantes de diversos povos e a dos nossos compatriotas, entre os quais me incluo sem apresentar justificações para o que é mau, nem louros para o que é melhor. Algumas dessas atitudes por mim próprio constatadas são impensáveis em Portugal, como pode ver-se através de três situações que me aconteceram, ocasionalmente, nas minhas deambulações em automóvel, pela Europa.

Uma vez, na Alemanha, perto de Koenigsberg, cansado de viajar com o meu atrelado na faixa da direita de uma auto-estrada, ocupada longo tempo por uma lenta coluna militar, fiz uma ultrapassagem, à portuguesa, pela fila imediatamente a seguir, coisa de breves segundos, convencido de que ninguém via... mas fui mandado parar, meia dúzia de quilómetros adiante, por um carro de polícia de trânsito que me aplicou a multa respectiva, sem apelo nem agravo. Como fora possível? Por quê? Simplesmente tinha sido denunciado por algum automobilista zeloso e autuado por dois polícias honestos e eficazes. Quase seis meses depois, recebi em Portugal uma carta da Autoridade Alemã de Trânsito, lembrando-me de que tinha até uma data próxima para recorrer da multa ao tribunal respectivo, se me achasse com direito a impugnar legalmente o castigo...

Outra vez, ao atravessar a fronteira franco-suíça, em La Chaud-de-Fonds, não vi guarda do lado francês, não parei no risco de demarcação e avancei muito lentamente, pensando, à portuguesa, que o posto estaria desactivado. Logo, cinquenta metros andados, vi pelo retrovisor um guarda retirar a pistola do coldre e fazer menção de apontar na minha direcção. Parei imediatamente, saí por precaução e para protestar contra o que eu pensava ser um exagero de autoridade, mas fui inspeccionado e repreendido sem piedade, com ameaça de sanções, etc.

Finalmente, ao entrar em Grenoble, perdi por momentos o meu sentido de orientação e atrapalhei-me numa avenida de certo movimento. Fiquei preocupado e numa situação delicada do trânsito. Logo dois polícias, de mota, se colaram ao vidro do carro e me perguntaram aonde me dirigia. Pediram-me, delicadamente que os seguisse, cruzando quase toda a cidade cheia de veículos e semáforos, levando-me são e salvo ao parque de um hipermercado dos arredores, no enfiamento de uma via principal para onde tencionava ir.

Nunca pude esquecer estas ocasionais lições de eficácia, de honestidade no cumprimento das leis, na observação simultânea dos direitos cívicos dos cidadãos pelas autoridades policiais. Também verifiquei que o cidadão comum compreendia igualmente essa cidadania duma maneira muito diferente de nós, portugueses, considerando um dever a denúncia das infracções à lei, tanto como o seu cumprimento!

Não existe essa tradição, em Portugal. Nem mesmo agora, que tanto se fala em Segurança ou em Fugas ao Fisco...

Mas assim, as leis não são esquecidas nem deixadas ao abandono, nem interpretadas ao gosto de cada um, nem varridas para debaixo do tapete como lixo, coisas comuns neste nosso país de gente boa, humilde e de brandos costumes, como soe dizer-se, mas essencialmente, custa dizê-lo, de branda cultura...

Sem comentários: