sexta-feira, 5 de setembro de 2008

CRÓNICA DE VILAR DE PERDIZES


A sabedoria dos bruxos

Tinha pensado, logo de manhã, escrever algo sobre as últimas do dia. Fui à biblioteca, como de costume, ler os diários, e já não me apeteceu tanto.

De princípio a fim, da primeira à última página, tudo era a descrição mórbida dos crimes, das trapalhadas das capturas, das entrevistas às vítimas, aos curiosos, aos polícias, das peripécias dos julgamentos, das habilidades dos advogados, dos comentários a favor e contra as novas leis, dos reforços da segurança e da falta dela...um nunca mais acabar de desgraças, um empolamento doentio de encher folhas e folhas que as pessoas lêem apressadamente, ou quase já não lêem, encolhendo os ombros, como quem diz com enfado:

-Para quê? Não vale a pena, é o trivial!...

Reparo que cada vez mais o leitor comum lê menos, e se entretém cada vez mais a ver fotos. Não há dúvida de que uma foto bem tirada, com oportunidade e clarividência, pode descrever, sinteticamente e de forma correcta, aquilo que vários parágrafos não conseguem, com a vantagem de franquear ao olhar rápido e perspicaz de alguns segundos o que a leitura de um texto rebuscado não consegue transmitir ao leitor, por vezes, ao largo de uma hora!

Verifico também que a leitura dos jornais desportivos sobreleva em muitas ocasiões a dos diários noticiaristas, embora estes procurem colocar em destaque as notícias desportivas e, no seu interior, incluam oportunisticamente um caderno dedicado a temas do desporto. Mas também não tenho a certeza de que os leitores lêem porque, ao melhor, passam os olhos pelos títulos, pelas fotos ou por alguma fofoca em destaque e nada mais...

Não sei como interpretar estes fenómenos da vida quotidiana.

Como dizia um fadista derrotista e choramingas, várias décadas atrás, já nessa altura sem conseguir chamar a atenção de quase ninguém, como acontece com os fadistas de hoje, com excepção da Mariza e da sua alteração definitiva do fado da tasca popularizado pela Severa, o Marceneiro, a Hermínia e pela já um tanto desviacionista Amália (que me perdoem os catalogadores do item):

Tudo isto existe, tudo isto é triste, tudo isto é fado!

Mas, pensando bem, talvez tudo seja fácil de explicar, na minha ignorância. Para os sábios, a explicações enchem-se de dúvidas e, muitas vezes, não conseguem chegar a conclusão nenhuma. Ou emitem conclusões verdadeiras, mas tão complexas que o comum dos mortais não entra nelas, por mais que se arranhe todo. Enfim, nas coisas simples da vida, os sábios são, frequentemente, uns patetas, no mínimo uns desajustados que vivem fora deste mundo que nós frequentamos; vejamos o Arquimedes, o Newton, o Einstein...dos quais se contam, além dos seus feitos, anedotas que ficaram na História, para todo o sempre.

Mas, voltando atrás, a verdade é que já Aristóteles, há mais de dois mil anos, botava esta sentença lapidar: o ignorante afirma, o sensato reflecte, o sábio duvida.

Vem toda esta lenga-lenga a propósito de uma notícia da Lusa que destoava do tom geral da imprensa do dia de hoje: «O Congresso de Vilar de Perdizes».

Fazia uma ligeira referência histórica ao início deste evento imaginado e fomentado pela carismática figura do Padre Fontes, há vinte e cinco anos, e que se tem mantido, cada vez com mais fregueses, quero dizer congressistas, desde então. A notícia descrevia depois ao pormenor as barracas das mezinhas, das ervas milagrosas dos mais variados remédios para as mais variadas doenças, desde a espinha caída à prisão de ventre, etc. Também o jornalista mostrava os seus méritos a apresentar aos leitores os médios, os videntes, os místicos, os psicólogos, os deitadores de cartas, os adivinhos, os endireitas, os exorcistas, bruxos aos molhos, todo um exagero de profissionais encartados da medicina popular pela universidade da vida ou do chico espertismo que a vida difícil promove, sobretudo nos meios rurais, mas também já, com alguma fartura, nos meios urbanos, como pode verificar-se pela passagem da vista pelos anúncios repetidamente expostos na imprensa de todos os dias.

Certo que, para entrar nestas universidades não se necessitam médias exageradas. Não há, tão pouco numerus clausus, mas é preciso ter um certo jeito que não está ao alcance de qualquer um. Trata-se de cursos altamente especializados, com aulas proporcionadas muitas vezes por catedráticos inspirados no alto ou nas profundezas, nos quais o médico actual não obteria nunca aprovação! Por isso mantêm uma clientela popular fiel a quem cobram em dinheiro ou em espécie, como o antigo João Semana, de acordo com as possibilidades dos clientes, mas quase sempre valores muito abaixo das normais consultas médicas. Ali não há multibanco, tudo se processa com dinheiro à vista, sem cheques, sem facturas, sem calculadoras, sem computadores nem outras invencionices da ciência dos nossos dias.

Os médicos (peço perdão se me engano) não sabem nada destes tratamentos, destas curas espectaculares de Vilar de Perdizes e afins e cobram sempre um dinheirão, com IVA ou sem ele.

O Padre Fontes, dizia o jornalista meticuloso, lá andava no meio das gentes, um tanto preocupado, porque algum dia teria que passar a pasta da organização a alguém e, dentre os seus discípulos, todos muito agarrados a ele, não havia nenhum com protagonismo suficiente (admito!) para pegar na obra, neste importantíssimo Congresso Anual, sozinho...A idade já pesa e, digo eu, haverá que contar sempre com uma possível intervenção do Infarmed, da ASAE, das Finanças, até do Bispo, apesar de andarem todos a dormir há vinte e cinco anos... Se tal acontecer, se acordarem, estará tudo estragado!

O que me deixou perplexo, ou talvez não, foi, a dada altura do texto, ler uma fantástica, imprevista referência a certo turismo de massas.

Coisa bizarra, neste contexto? Mas hoje o turismo está em toda a parte. Porque é que não poderia assentar arraiais em Vilar de Perdizes? Porque se trata de uma coisa positiva, isenta de bruxarias e outras palermices que ainda há por aí? Os espanhóis não estão certos de que assim seja. Eles juram que não acreditam em bruxas, mas vão dizendo que as há... que as há...

Ora, certas agências de turismo, ou grupos de profissionais oportunistas, arranjam excursões baratas em camioneta, a Vilar de Perdizes, com almoço e tarde livre para consulta ao bruxo de sua predilecção, aviamento de receitas com visita às barracas de mezinhas e depois, à hora marcada, partida para uma voltinha à Galiza, ali tão perto.

Ouro sobre azul.

Que coisas sabem estes bruxos! E qual a comissão?

Felizmente, apesar de tantos anacronismos que há por aí, os médicos ainda não se lembraram de angariar clientes dessa maneira. Por enquanto, Hipócrates poderá continuar tranquilamente, no seu pedestal, de toga e braço estendido, indicando o caminho...

Algum dia ficará cansado.

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