domingo, 7 de setembro de 2008

CRÓNICA DO ERRO GROSSEIRO

Togas e jipes

Erros são o que mais há por aí. Todos erramos. Ninguém é infalível.

Mesmo erros grosseiros há bastantes.

Certo é que, na maioria das vezes, esses erros de palmatória são encobertos habilidosamente por quem os comete e apenas alguns chegam ao conhecimento geral. A vergonha, o egoísmo, a falta de sentido da honra, a falta de civismo e de respeito para com o semelhante, o oportunismo, a inveja, a soberba, o medo das consequências e de tantas outras coisas fazem com que assim aconteça, no caso de erros cometidos pelo cidadão comum. Esses motivos são aumentados, multiplicados até, quando se trata de figuras públicas, de personalidades com grandes responsabilidades na Sociedade.

Pior que tudo é a falta de um verdadeiro sentimento de culpa, da parte de quem erra. Por um lado, frequentemente não consegue rever-se no erro que cometeu, achando-se portanto impossibilitado de fazer mea culpa. Por outro lado, sabendo que cometeu um erro crasso, sente-se incapaz de confessá-lo aos seus concidadãos, a quem não concede o direito de saber, muito menos de poder alterar o seu estatuto, se tal viesse a acontecer...

Depois chegam sempre as justificações persistentes, anacrónicas, apressadas, mesmo antes que elas tenham sido pedidas.

E, finalmente, surge o silêncio!

Durante muitos, muitos anos, ocorreu o pesado silêncio da crítica sobre a actuação de algumas classes profissionais carismáticas, no nosso país, como os médicos e os juízes. A democracia renasceu em Portugal, com o 25 de Abril, em 74 mas, apesar do tempo decorrido, essas classes profissionais privilegiadas e subservientes ao regime anterior continuaram a manter o seu espírito de casta fechada à exposição e à crítica pública. Só há bem poucos anos é que começaram a ser publicados, publicitados e comentados erros cometidos por alguns desses profissionais.

No que toca aos médicos, a defesa da vida humana e o tratamento das doenças era assunto do seu domínio absoluto, não admitindo ninguém com conhecimentos capazes de sobrelevar os seus, para poder efectuar juízos de valor sobre as doenças, o diagnóstico, o prognóstico, os métodos e a terapêutica utilizada. Os médicos eram infalíveis. A maior cultura das populações e a acção da imprensa mostraram que assim não era.

No que toca aos juízes, haviam-lhes sido conferidos, pelo governo da ditadura, directrizes e poderes especiais. Não só eles eram os únicos detentores da verdadeira interpretação das leis, como intocáveis e resguardados de qualquer crítica, na sua aplicação. Isso tornou-se numa tradição cultivada e fortemente enraizada ao longo de meio século, muito difícil de arrancar da cabeça da «corporação» dos magistrados. A Justiça Portuguesa, até há bem pouco tempo, julgava simplesmente acima dessas trivialidades.

Assim, felizmente, com a prática cada vez mais constante e confiante da liberdade individual, começaram a aparecer aos olhos dos cidadãos os erros médicos e os erros judiciais, nem sempre possíveis de correcção ou ressarcimento por parte das vítimas, nem sempre tendo efeitos penais sobre os culpados. Com o tempo, penso que melhoraremos todos a nossa perspectiva quanto ao exercício destas profissões e acabaremos com essas imunidades absurdas, cuja manutenção de forma quase intacta, durante cerca de trinta anos de democracia, só foi possível devida ao analfabetismo e à incultura existentes. E, denunciando os casos anormais, responsabilizando os seus autores, iremos acabando paulatinamente com eles ou, pelo menos, diminuindo o seu número.

Vem isto a propósito da sentença de um Tribunal da Relação que vem sendo notícia na Comunicação Social, atribuindo erro grosseiro ao desempenho do juiz Rui Teixeira, em 2003, no início do badalado caso Paulo Pedroso.

Sobre isso, alguns dizem que a Justiça, finalmente, funcionou. Outros afirmam que, pelo que se infere deste erro crasso, não funcionou!

Alguns dizem que o Estado deve pedir desculpas pelo erro cometido e indemnizar convenientemente a vítima. Outros afirmam que deve recorrer da sentença, que o M. Público não não pedir desculpa a ninguém e não pagar-se o que quer que seja.

Alguns acham que o juiz que errou grosseiramente, deve ser castigado e retirado das funções que desempenha. Outros afirmam que são ossos do ofício, os juízes são independentes e inamovíveis.

Alguns dizem que a quantia da indemnização sentenciada é irrisória relativamente ao custo de uma vida social truncada, marcada para sempre com um estigma que nunca se apagará na cabeça das populações. Outros afirmam que as finanças do estado devem estar sempre acima dessas coisas.

Alguns dizem que houve uma cabala contra certo partido político, tomada a preceito pelo Procurador Souto Moura e o juiz Rui Teixeira: Outros que isso é uma invenção e que os «inventores» devem prová-lo ou ser julgados.

Ora, no fim de tudo isto e o mais que tem sido dito e dava para encher muitas páginas, o que se verifica?

Quase toda a imprensa, que durante cinco anos exaltou o juiz Rui Teixeira e zurziu Paulo Pedroso sem piedade, desanca agora o juiz, enaltece Paulo Pedroso e transfigura-o em vítima digna de todo a nossa a piedade e consideração.

Mas também é consensual que o juiz Rui Teixeira e o M. Público exageraram na rapidez, na publicitação, no aparato da detenção e sua manutenção, sem prova! Erraram eles em toda a linha, ao querer ganhar dividendos a todo o custo, onde tantos, ao longo de tantos anos, haviam falhado.

Admite-se, porém, que o povo, matraqueado durante anos com o caso Casa Pia, estava pronto para ver sangue e imaginava já os poderosos na penitenciária, aqueles que sabem fazê-la e sempre escapam...e o Paulo Pedroso fora, pelo M. Público e pela imprensa, transformado num deles. O povo não está interessado na inocência de Paulo Pedroso, mas que haja ao menos um culpado, um que seja, a enforcar na praça pública. Como não há nenhum culpado, até agora, uma vez mais a Polícia Judiciária e a Justiça defraudaram o sentimento popular, para quem a vítima foi retirada ao espectáculo da forca e nada mais.

A verdade é que, neste momento, pouca importância tem já o que se diga sobre o assunto. A Imprensa oportunista da fofoca ficou desacreditada, quase tanto como a Judiciária e o Ministério Público.

A Justiça do caso Casa Pia, como o da Menina Inglesa da Praia da Luz, como o da Operação Furacão, como a de tantos outros casos mediáticos que por aí abundam, continua por fazer. Outros temas da Justiça, como o caso Aquaparque e outros, são autênticos tiros no pé, em que a Justiça também é fértil. Ela lá vai no seu passo lento e inseguro, ziguezagueando por entre os fantasmas dos códigos, os milhares de leis que mal consegue interpretar e fazer cumprir. As gentes também não compreendem essas mesmas leis, mas têm delas uma intuição apurada e gostariam de vê-las aplicadas rapidamente, com eficácia e bom senso, não aos tombos e a passo de caracol...

Começo a estar farto dos incontáveis comentários dos fazedores de opinião, sobre o consensual Erro Grosseiro, tema que já foi por eles virado e revirado de todas as formas e feitios, mais do que a volta a Portugal em jipe 4x4 que agora começa.

Para mim, o caso é simples:

Errar é humano, mas confessar o erro é quase sobre humano, e perdoar é divino.

Acusar e condenar é rápido e fácil, está ao alcance de qualquer um. Absolver é um problema difícil e já não está na mente de todos. Restituir é uma acção de enorme dificuldade, virtude de poucos. Infelizmente, os juízes (com toga ou de jipe) são homens iguais aos outros, uns mais que outros...

Mas às vítimas desses erros já ninguém poderá tirar os sofrimentos morais que lhes foram infligidos, nem o estigma com que as marcaram.

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