MIUZELA EM AGOSTO
2007. Em Agosto fui à Miuzela, passando, de caminho pela Cerdeira do Côa, sobre a velhinha ponte do rio Noémi, quase ao lado da casa da minha tia Amélia que, na companhia do meu avô (seu irmão) visitava, nos passeios de verão, aproveitando a ida a uns banhos de mergulho a um pé arroxeado, coisa que um curioso qualquer das redondezas lhe recomendara, naquela época em que os médicos na Província eram raros. Eu estava de férias, a minha avó falecera há pouco, os meus tios tinham as suas vidas, eu e o Albertino éramos as únicas companhias de que o meu avô podia dispor, naquele Verão, nos seus curtos passeios até à capela de S. Martinho e ao cemitério novo onde já havia preventivamente mandado reservar campa própria, com laje de granito. Lá viria a ser depositado, cerca de três anos depois, como ele antecipava, depois da grande partida que o dito pé lhe pregara, não obstante os esforços dos médicos do Hospitais da Universidade de Coimbra.
Passei o rio bem devagar, olhando aquelas margens e o casario circundante que me haviam sido tão familiares e, num arranque súbito, pisei o acelerador para fugir dali, rua acima, até chegar ao cruzamento com a placa da Miuzela do Côa.
Esforço baldado. A estrada de alcatrão não conseguia fazer-me esquecer o antigo caminho alargado de saibro que várias vezes passara a pé, devagar, acompanhado do meu avô, apoiado na sua bengala… através das mesmas vinhas rodeadas das mesmas paredes seculares feitas de pedregulhos de granito, com alguns pinheiros e barrocos pelo meio. Depois da curva, no alto, sobressaindo da cintura de hortas e lameiros, a Miuzela trepava pela colina, com as casas de paredes brancas e negras entremeadas, a igreja, a torre-prisão-relógio assente numa grande laje quase no centro da povoação, a escola, o formidável barroco com as três cruzes do Calvário, e a cintura de vivendas construídas pelos emigrantes de sucesso, enquanto o sol do meio dia dardejava alegremente sobre os respectivos telhados de moderna telha nacional…
Por momentos, pareceu-me ouvir os condutores dos carros incitando as vacas, os carros chiando, aos tombos pelas rochas irregulares dos caminhos serpenteando por entre as paredes das vinhas, os rebanhos passando em tropel, guiados pelos cães e pelos pastores assobiando, de cajado cruzado atrás dos ombros, as vacas pastando nos lameiros próximos…e as mulheres enxotando os burros carregados com lenha, sacos de batatas, eu sei lá que mais…
Mas a ilusão só permaneceu na minha mente por escassos minutos. Na realidade, nem um animal nas pastagens, nem um aldeão sequer na faina agrícola… Por mim passaram, em curto espaço, um automóvel, uma carrinha e um tractor.
Parei o carro num divertículo da estrada, saí por momentos, puxei da minúscula máquina fotográfica que levava presa ao cinto, à japonesa, e disparei fazendo a pontaria ao aglomerado do casario, salpicado de automóveis modernos que antevia de classe média ou média alta…
Regressei ao carro meio confundido, sentei-me e fiquei ali pensando, por momentos, nem eu sei
Reparei que recentemente haviam sido colocadas vidraças protectoras no espaço ligando as duas portas centrais, que no meu tempo davam entrada para a sala das meninas e a dos rapazes, e as respectivas casas de banho nos topos. Tive ganas de pedir a chave a alguém e entrar ali, cerca de setenta anos depois…Outra impossibilidade!
Caminhei a pé pela rua calcetada, na direcção do mercado, passando primeiro pelo café com mesa de bilhar funcionando, longe dos tempos das tascas da Ti Beatriz Gaga, do Álvaro e outras, onde ia, por vezes, com o Albertino, comprar a onça de tabaco «rubio» e as mortalhas ziguezague para o meu avô que, no Inverno, enrolava os cigarros uns atrás dos outros, acendendo-os, nos meses de Inverno, com uma brasa retirada da lareira com a tenaz, enquanto o fumo da lenha, nem sempre bem seca, quase me fazia chorar e lá fora a cadela Coimbra, que o meu tio Fausto levava à caça para os barrocais do Côa, ladrava à aproximação de algum visitante que avançava com cuidado na laje fronteira coberta de gelo, até bater à porta…
O local do mercado, encostado ao barroco formidável culminando nas três cruzes do Calvário, como disse, lá continuava, impossível de fazer desaparecer. Faltavam as bancas das fazendas, dos calçados, dos doces, das alfaias agrícolas. Ainda se transaccionariam porcos, vacas, cavalos, burros e muares? O dono do café já me desenganara. Agora, o negócio eram os tractores, as máquinas ferramentas, as roupas pronto-a-vestir, os rádios, os televisores, os queijos e as farturas, etc…uma limpeza que os automóveis e as carrinhas traziam, arrumavam e levavam à tardinha, com uma facilidade espantosa, juntamente com os feirantes, cada vez mais exigentes e cada vez em número mais reduzido.
As ruas onde dantes havia que fazer curvas por entre os pedregulhos e as bostas dos animais, transportando lanternas, cântaros de água e molhos de palha, estavam agora esmeradamente limpas, possuindo as respectivas tampas do sistema de esgotos, os contadores de água, os postes e as lâmpadas de iluminação, e até os depósitos para deposição de lixo, tudo numa calçada impecável, com valetas, passeios, não faltando as identificações respectivas, colocadas nas paredes das casas de esquina…
Subi ao Calvário, passando pela sede da Junta de Freguesia, o Posto da Guarda Republicana, o Centro de Dia com as suas carrinhas, a Associação Cultural e Desportiva, com o moderno ring e campo de basquete, coisas que na minha meninice eram impensáveis, porque totalmente desconhecidas…
Um velhote de oitenta e cinco anos, sentado à entrada do Centro, ainda me perguntou o que eu queria dali e, numa primeira impressão, não soube responder-lhe…Saquei da máquina fotográfica e lá me ocorreu dizer:
-Estou aqui de passagem, a matar saudades.
-Então o senhor é daqui?
--Não e sim…Os meus antepassados eram de cá. Provavelmente ainda devem andar por aqui alguns familiares…
-Ah!...
Não ouvi o que ele disse a seguir. Senti-me, inexplicavelmente incapaz de continuar. Apontei a objectiva para o Centro Cultural e para a paisagem que se desfrutava dali, despedi-me e caminhei de regresso ao carro. Avancei pelas ruelas estreitas, passando pela casa do tio António Beirão, da tia Felismina e da tia Amélia, em direcção à porta da Ti Beatriz Gaga, ao portão dos carros de vacas e curral dos meus avôs, às casas dos seus primos António Freire, César e Mariquinhas e parei em frente da escadaria da varanda de pedra que dá entrada para a porta principal da casa de família, coberta com uma formidável glicínia de alguns cem anos de idade a cuja sombra o meu avô materno me ensinou as primeiras letras, em cálidas tardes de Verão...Um automóvel estava estacionado no largo fronteiro, mesmo por trás da capelinha onde a minha avó vinha, à tardinha, com um grupo de mulheres piedosas rezar o terço, nos dias de Verão. A quem pertenceria ela agora?
Mais uma vez, não tive coragem de subir e limitei-me a tirar duas ou três fotografias. Cem metros adiante, em andaimes armados nas paredes da Igreja Matriz, dois funcionários faziam trabalhos de reparação de pintura. Olharam para o meu carro cuja marcha, vagarosa lhes pareceu estranha, tal como a minha cabeça levantada com ar inquisidor…Saudei-os e dirigi o volante para largo da fonte de chafurdo, agora definitivamente fechada, onde tantas vezes fora acompanhando a Ti Maria Sécia, a mãe do Albertino, no transporte de água para casa, carregando o grande cântaro de vinte litros à cabeça, várias vezes ao dia… O Albertino, o principal funcionário da casa, era afilhado dos meus avôs e, pela tardinha, levava as vacas ao lameiro, ali perto, depois de lhes dar de beber no tanque, ao lado da fonte. Quantas vezes também o acompanhei nesta tarefa, aproveitando para ir a cavalo, seguro nos seus braços, com grande receio da minha avó!
Decidi, subitamente, afastar-me dali. Já na estrada, de saída, virei o volante na direcção dos pedregais de Porto de Ovelha, terra de um endireita famoso que, aos seis anos de idade, me curou de uma fractura no pulso, após uma queda de um burro preguiçoso que picara com um prego, num lameiro do Vale Paião, na altura do corte do feno. São cinco ou seis quilómetros que o Albertino percorrera a cavalo, à desfilada, para chamar o homem que viera por idêntico meio de transporte, a fim de dar dois puxões ao osso, comigo quase desmaiado de dor, e recomendar a aplicação local de papas de linhaça… Ali perto, uma moderna ponte sobre o Côa, permite a passagem dos carros e prolonga a estrada, mesmo ao lado das antigas poldras, na direcção de Vilar Maior, mas também de Malhada Sorda, Freineda, Castelo Bom, Nave de Haver, Vilar Formoso e Almeida, a sede de concelho.
Como vão longínquos esses tempos de cavalgadas por montes e vales, dias inteiros ao sol, à chuva, ao vento e à neve, em trajectos que hoje se fazem em minutos, em meia hora, no máximo, por razoáveis vias asfaltadas municipais, algumas das quais não figurando ainda, por desleixo ou ignorância, nos mapas mais recentes das estradas do país.
Cheguei a Vilar Formoso, agora já sem o aparato das fronteiras tradicionais, mesmo à hora do almoço. O antigo café atascado onde uma vez, há uns bons trinta e cinco anos, apreciei duas mulheres espanholas e duas portuguesas numa operação de contrabando consistindo na troca de carne gorda por carne magra, na presença cúmplice de um guardia civil e de um guarda fiscal, era agora um respeitável restaurante, mesmo ao lado da bonita estação de caminho de ferro forrada a belíssimos azulejos, mas quase sem movimento. Ali decidi almoçar, curtir por um momento as minhas mágoas e saudades da manhã e saborear depois um cafezinho, antes de partir para outras aventuras…
2 comentários:
Que bom deve ser rever e ter lembrança de tanta coisa antiga.
Linda historia adorei conhecer
...faltou a passagem pelo Jarmelo!!! ;-)
Um abraço
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