sábado, 22 de dezembro de 2007

Ao correr da pena...


PRAXES E PRAXISTAS

Há algum tempo que tentava a arranjar disposição para escrever duas larachas sobre as praxes e os praxistas. Não foi fácil.

Ainda agora não sei se consegui o que queria.

Sei que, de vez em quando, lá vem a Comunicação Social, sempre ela, a dar mais uma notícia escabrosa sobre o tema. Uma delas, talvez não a última, explicava como uns praxistas tinham convencido um praxado, numa universidade da Província, a atirar-se, de cabeça para baixo, num escorrega que finalizava num pequeno lago com fundo de cimento ardilosamente coberto de lama.

Era suposto isto ser uma graça e sem ofensa, mas as contas saíram furadas e o desgraçado acabou por partir uma vértebra e ficar paralítico da cintura para baixo!

Há tempos, uma brincadeira da praxe, consistia em atirar um caloiro ao ar e apará-lo nas mãos estendidas de colegas mais velhos Uma rapariga de dezanove anos, caiu sobre um entrelaçado de braços frouxos, fracturou a coluna e ficou inutilizada para toda a vida.

Aqui há uns dois anos, uma caloira universitária duma universidade provinciana, apresentou queixa em tribunal, contra uma tropelia de tipo mais ou menos erótico, a que teria sido brutalmente coagida por um grupo de praxistas da treta.

E assim por diante.

O interessante, nestes casos, para não citar tantos outros que têm vindo a lume, nos últimos anos, é que nunca se chega a qualquer solução para acabar com estas macacadas que muitas vezes não são inócuas, chegando a ser ofensivas da integridade física, para não falar da integridade psicológica das vítimas.

Os estudantes do segundo ano das universidades, os «semis» ou semi putos, acham interessante a vingança pelo que passaram no ano anterior, massacrando os novos caloiros.

Os juízes encontram sempre atenuantes para não darem castigos exemplares, e os reitores e conselhos directivos sentem-se incapazes de tomar decisões sobre matérias em que eles próprios, na sua juventude foram exímios praticantes e depois francos contemporizadores e às quais dão sempre a sua aprovação…quem sabe se com medo de perder popularidade entre a «malta estudantil» que gosta da brincadeira e que também vota, afinal.

Mas todas as brincadeiras têm limites. Fui, nos meus tempos de caloiro, em Coimbra, «mobilizado» uma vez para uma «latada» e lá tive que ir, como muitos outros, com o fato virado do avesso e a cara pintada, em cortejo pelas principais ruas da cidade, levando um cartaz, na ponta de uma cana, já não me lembro sobre quê. Porém, um colega muito refilão e que ainda por cima era filho de um catedrático, foi mobilizado para uma hora de gozo numa república transformando-se num autêntico bombo de festa, e onde, para despedida, lhe mandaram lavar um penico, repetidas vezes, disponibilizando-lhe uma vassoura, um esfregão e detergente, chateando-o sempre, no fim de cada operação:

-Você acha que isso está bem lavado? Isso ainda não está bem lavado! Tem que lavar outra vez!

Ao fim de quatro ou cinco lavagens, com o caloiro quase a ter um ataque de nervos, perguntavam-lhe, descaradamente:

-E agora, continua a achar que já está bem lavado?

-Claro que está bem lavado!

-O caloiro tem mesmo a certeza? Acha que está mesmo bem lavado?

-Tenho a certeza absoluta!

-Então, vamos prosseguir. O caloiro garantiu que sim…Encha o penico com água!

E o infeliz, encheu, sem suspeitar de nada.

-Agora beba!

E durante cinco minutos, foi um pratinho de ameaças, com insistências e negativas, com insultos à mistura, que caloiro é besta, é pior que bicho, destribe-se, não merece confiança naquilo que diz, é um incompetente, vai ficar retido na república até amanhã para nova lavagem e novo interrogatório, etc., etc..

No final tudo acabava em beleza, se o caloiro não dava a casca, pois caso contrário, faziam-lhe a vida negra. Se o caloiro era porreirinho, até ia para a farra ou saia dali com alguma bêbeda das grandes, depois de dar largo divertimento àqueles praxistas de serviço… semi putos, putos, e por aí acima, até aos veteranos e ao dux veteranorum, o estudante com mais anos de matrícula, cursando naquela altura, e que presidia a muitos actos da praxe académica. Tive dois colegas que foram dux veteranorum, com dezanove, vinte matrículas, que tratavam por tu alguns dos catedráticos de quem haviam sido colegas e ficaram célebres na Universidade, na cidade e até no País, pelas suas pilhérias, anedotas e outras excentricidades. Apesar disso, com a maior parte dos anos passados nas praxes e nas pândegas…chegaram a formar-se em Medicina e exerceram!!! Longe estávamos dos tempos vindouros com números clausus e notas de ingresso de dezanove e vinte!

Não quero deixar de referir, já agora, o rapanço do cabelo, as palmatoadas e as mobilizações pelas trupes, depois do toque da cabra como era chamado o sino da Torre da Universidade. Os caloiros não podiam andar na rua, depois das seis horas da tarde, ouvido o toque da cabra.

Na Cidade dos Doutores, esses rituais eram, naquela época, quase lei. Os caloiros, mais que os bichos, como eram chamados os alunos do liceu, passavam as passas do Algarve. Os grelados e os fitados, por outro lado, eram quase tomados por doutores, embora muitas vezes as fitas não correspondessem ao êxito escolar. Era tal a influência da praxe, com todas as suas histórias e anacronismos, na vida escolar coimbrã que, uma vez, um catedrático de Letras que se deslocara de comboio a Coimbra para fazer uma conferência, foi abordado pelo trinca bilhetes da estação de caminho de ferro que lhe segredou, como a prestar-lhe um grande serviço:

-Ó senhor doutor, se é caloiro fuja, que ainda há um bocadinho passou ali uma trupe e rapou o cabelo a um…

Apesar de todas essas patetices, não tenho ideia de ninguém ficar fisicamente inutilizado, nem haver memória de queixas ao tribunal. É preciso ensinar os jovens de hoje a brincar, sem consequências trágicas. E, se isso não é já possível, então é preferível acabar com as praxes estúpidas, perigosas, destruidoras da personalidade e da sã camaradagem…ou, em última análise, com todas ao mesmo tempo, em qualquer estabelecimento de ensino.

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