quarta-feira, 26 de dezembro de 2007

CRÓNICA DO DIA 26


O dia 26 de Dezembro de 2007

Liguei a televisão. Os canais de referência transmitiam excertos das alocuções do Cardeal e do Papa que na Basílica de São Pedro, em Roma, pregara a paz a um mundo displicente e incrédulo, representado na enorme praça por público de diversas nacionalidades, como é hábito, desta vez acomodado também em torno de uma árvore de Natal de razoáveis dimensões…sinal dos tempos.

Escutei o essencial, mas já não tive paciência para assistir até ao fim do programa alongado propositadamente para encher tempo, na ausência de acontecimentos de vulto, nesta altura em que toda a gente está de férias, mesmo que não queira!.

Fartei-me de correr canais, mas nada me entusiasmou. Resolvi sair.

Calcorreei a rua na direcção da papelaria do mini centro comercial próximo da minha casa. O sol já começava a aquecer e, não obstante uma pequena aragem que soprava fresca, o tempo não estava desagradável, o que favorecia a minha boa disposição, naquele momento.

Subi lentamente a meia dúzia de degraus de acesso à porta principal…

Uma folha de papel A4 colada na face interior da vidraça, avisava, em letras maiúsculas manuscritas e mal amanhadas:

NÃO DEMORO

VOLTO JÁ

Eu próprio é que dei uma volta pelo mini centro, convencido de que a funcionária, como é hábito neste país de pequenos vícios, teria abancado tranquilamente a tomar a bica das onze… os clientes que se tramassem, até podiam esperar um pouquinho!

As pequenas cafetarias estavam às moscas e, apenas em frente da Botaminuto, a dona ou sócia da ourivesaria onde vou trocar as correias do relógio de pulso, cada vez mais caras e mais ordinárias, coscuvilhava com a dona da loja dos periquitos (que nunca vi vender nada, já que os tempos não estão para passaradas desnecessárias), ao som das marteladinhas certeiras do sapateiro de consertos rápidos que, nos intervalos ia fazendo chaves com perícia, para alguém com pressa, com os dedos ainda besuntados de cola.

Atrevi-me a interromper aquele quadro cinzento de gangas dos pés à cabeça e caras tristes de fraco negócio, ainda para mais de ressaca da noite de consoada e da comezaina da véspera:

-Desculpem, minhas senhoras, por acaso não sabem dizer-me se a dona da papelaria ainda demora muito? Nos cafés, já vi que não está…

-Não vale a pena esperar por ela, senhor! Hoje não vem. A loja não abre!

-Mas tem um papel na porta…

-Mas não vem! Deve ter-se enganado…

Apetecia-me sentar uma meia hora, na esplanada, ao sol, onde havia muitas mesas vazias e um único utilizador matinal mas, sem jornal, nada feito.

Contornei o Centro Comercial dos Moinhos e dirigi-me, quase como autómato, ao Supermercado São Pedro, que além das muitas variedades de géneros alimentícios, também vende canetas bic, pilhas para lanternas de emergência, jornais e revistas. Estava salvo. Mas foi só por um triz! O dono já andava a recolher os jornais, as revistas e os cadernos de sudoku e amarrava-os com a força desalmada de um danado, depois de uma valente joelhada a aconchegar…

Tinha escapado o Diário de Notícias. Surripiei rapidamente um exemplar do monte e dirigi-me à única caixa de serviço, cuja funcionária me olhou de cima para baixo, com ar de comiseração, acentuando, antes que eu me arrependesse ou a cliente seguinte pusesse as cenouras e as carcaças no tapete rolante:

- Um euro e vinte e cinco!

Ainda tive ânimo para arquitectar a minha vingançazinha merecida, já meio a sorrir para dentro:

-Não tenho trocado! Só vinte euros...

-Não faz mal. Eu troco!

E, num momento, passou-me para as mãos um monte de moedinhas de várias valências que a muito custo consegui meter no porta-moedas que ficou como um trambolho e a pesar que eu sei lá, no bolso do lado esquerdo. Ainda me apeteceu reclamar que não queria nada daquilo, que só aceitava um troco decente, que ela tinha obrigação, etc.

Mas a verdade é que fora habilmente driblado pela espertalhona, nos meus antecipados intentos vingativos!

Sai para a rua com o jornal meio dobrado, a tentar, no meu passo miudinho, não agitar muito as folhas, de forma a ir lendo as gordas. Não havia vento, nem pessoas nos passeios. Que agradável!

Toda a área era minha, mas, logo a cinquenta metros, dobrada a esquina, tudo se altera. Junto a um prédio próximo do meu, com as janelas de vários andares completamente abertas, um carro de bombeiros e uma ambulância manobravam, rodeados por um aglomerado estranho de figuras de diversas idades, a maioria em pijama…algumas de máscara de oxigénio colocada na boca, a combater os efeitos de uma possível intoxicação pelo fumo…

Não quis averiguar o sucedido, deixando essa tarefa para os correspondentes coscuvilheiros e repórteres de serviço. Regressei a casa, com o elevador felizmente já reparado da avaria de véspera, que os degraus são muitos e a minha idade já não está para avarias. E fiquei na sala, sossegadinho, a ler as últimas do dia, até que a minha mulher me chamou para o almoço a dois!

Como me parecia longe o dia de Natal da véspera, com a família toda reunida aos beijos e abraços, os netos em volta do Pai Natal que distribuía as prendas, os flashes de diversas máquinas digitais fazendo competição com as luzes dos candelabros, da árvore, das velas, da fibra óptica e até dos isqueiros de alguns inveterados fumadores…que naquele dia tudo é alegria, tudo se perdoa!

Fico por aqui. Estou a ficar triste.

Lembrei-me de que tenho cerca de duzentas fotos no cartão de memória da Pentax miniatura que me salva nestas ocasiões, para ver e guardar no computador. Como é bom voltar atrás, por momentos, nem que seja em sonhos, quero dizer, em fotografias!...

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