quarta-feira, 5 de dezembro de 2007

Crónica de caça


CAÇAR TORDOS COM TELEMÒVEL

Tinha eu uns dez ou doze anos, passava os dias cálidos de verão, na altura das férias, na quinta da família, em brincadeiras inocentes com um dos meus irmãos e um ou outro amigo da mesma idade que vivia perto de nós. Uma das travessuras era ir à caça de pássaros, usando fisgas artesanais que construíamos com tiras de câmara-de-ar de bicicleta, amarradas com guita aos extremos de uma forquilha feita de um ramo bifurcado, cortado e aparado com uma faca de cozinha.

A mãe ficava furiosa connosco, pois aquelas facas não eram feitas para cortar ramos, mas apenas carne, fruta e hortaliça. No entanto, as reprimendas não surtiam grandes efeitos e nós lá íamos, contornando as oliveiras, espreitando por entre os ramos, na esperança de visionar algum passarito descuidado e atirar a nossa fisgada. Nunca acertávamos. Por isso, não sei de quem foi a ideia de armar um falso bebedoiro, com um alguidar de barro meio disfarçado na terra, junto ao tronco de uma grande figueira que dava figos pingo de mel que nós adorávamos…e os pássaros também. Eles lá vinham a debicar os figos mais maduros e a tentar beber uns golitos de água do alguidar, enquanto nós espreitávamos postados detrás de uns arbustos e, quando os apanhávamos a jeito, puxávamos o cordel de uma rede dissimulada que caía com estardalhaço sobre ele e eventualmente sobre os pardais que bebiam... A verdade é que eles eram mais rápidos e ladinos que nós e não me lembro de uma só vez termos apanhado algum, ao fim de algumas horas, durante vários dias de calor abrasador. Ficávamos com a impressão de que as aves já conheciam perfeitamente a nossa armadilha. Quanto às fisgas, até se riam delas. E ainda bem que assim foi, pois se tivéssemos sido bem sucedidos, correríamos o risco, dada a eficiência da Guarda Republicana, de vir a sofrer alguma prisão, ser presentes ao juiz e de ir direitinhos a alguma instituição de correcção de menores…

Enfim, tempos que já lá vão! Felizmente safei-me!

Há pouco, passando os olhos pelo Público Digital, saltou-me aos olhos uma notícia sensacional, daquelas que os jornalistas primam por publicar em parangonas, Deus sabe porquê e para quê:

«GNR detem caçador que usava telemóvel como chamariz».

O espertalhão memorizava o piar dos tordos no telemóvel, sendo estes assim atraídos ao engano e ao chumbo certeiro da espingarda. Dali até à frigideira era um ver se te avias. Mas a GNR de Coimbra estava atenta e prendeu o infractor da lei em flagrante, para ser presente ao juiz de instrução criminal!

A notícia não diz como é que os agentes da GNR descobriram o caçador furtivo, o que seria interessante saber, dada a grande falta de meios com que luta a corporação no seu afanoso trabalho de policiamento das zonas rurais. Também não refere como o juiz de turno, cheio de afazeres até à raiz dos cabelos, foi arranjar tempo para interrogar o caçador e abrir mais um processo que se adivinha antecipadamente com páginas e páginas de descrições, citações de testemunhas, provas e contraprovas, impressões digitais, certidões e muitas assinaturas pelo meio, a juntar aos tantos outros milhares que aguardam resolução nos tribunais que nem os juristas trabalhando durante os célebres três meses de férias durante anos e anos conseguem por em dia…

Imagino, porém, que o raciocínio dos agentes investigadores não necessitou de grande esforço. Provavelmente o telemóvel do acusado estava sob escuta e o falso canto dos tordos foi captado pelo agente da PJ ou pelo meritíssimo juiz de turno. E assim teria sido fácil aos GNR, mesmo sem grandes requisitos, mostrarem a sua eficiência, após denúncia da Justiça. Mas esta é apenas uma suposição. Uma outra seria a própria GNR ser atraída pelo falso canto proveniente do telemóvel, relacionando-o com os atempados e certeiros disparos da espingarda do engenhoso caçador. E há ainda a hipótese mais remota dos pássaros denunciarem o infractor, pela sua sofreguidão em se dirigir aos milhares, à chamada do telemóvel, qual miragem do paraíso terreal…Também pode ter havido (provavelmente é o mais certo) denúncia de algum ecologista.

Seja como for, o certo é que a tasca monopolista lá da terra (acho que era Idanha -a-Nova) deixará de ter à porta o consagrado aviso aos clientes do afamado petisco: «HOJE HÁ PASSARINHOS» ou então, «HOJE HÁ PIPIS».

Também o mais certo é que, daqui para o futuro, os caçadores de avezinhas evitarão levar telemóveis para as caçadas – ou, pelo menos, evitarão servir-se deles.

E assim a GNR terá mais tempo disponível, nesta época do ano, para se dedicar aos caçadores de coelhos!

Com ou sem telemóvel, que a lei é para ser cumprida.

A Notícia do Público::

Para atrair tordos
Idanha-a-Nova: GNR detém caçador que usava telemóvel como chamariz
29.01.2007 – 16h37 Lusa

Um homem de 34 anos foi detido domingo pela GNR de Idanha-a-Nova, Castelo Branco, acusado de caça ilegal, por utilizar toques de telemóvel como chamariz para caçar tordos, disse hoje fonte policial.

"Gravava o piar dos tordos no telemóvel e atraía as aves com toques, o que constitui um processo ilegal" disse a fonte das relações públicas da Brigada Territorial da GNR de Coimbra.

O detido foi hoje presente a tribunal para determinação de eventuais medidas de coacção.

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