Notícias e entrevistas para a posteridade
26-1-2007. O frio tem sido o prato forte das notícias durante estes dias. Claro que com alguma coisa teriam que se entreter os meios de Comunicação Social, quando escasseiam os escândalos e as «fofocas» para primeira página. Há umas horas, num noticiário televisivo, fui surpreendido pela chamada a terreiro de um jornalista enviado a Bragança, na esperança de conseguir uma entrevista sensacional…
O facto aguçou-me a curiosidade e lá fiquei à espera, de olhos fixos no pequeno ecrã. Foi entrevistado, finalmente, após algumas considerações prévias do funcionário de serviço sobre o frio inclemente que, segundo ele, atrapalhava tudo e todos, um senhor de aspecto rural, natural de uma aldeia próxima que, logo à primeira pergunta pedindo comentários aos problemas eventualmente causados pelas baixas temperaturas, respondeu calmamente que elas eram um acontecimento habitual naquele mês e naquelas paragens, ao qual toda a gente das redondezas estava habituada…E o locutor do noticiário teve que desviar a atenção dos televidentes para outra entrevista preparada em Évora, com o mesmo objectivo. Ali, sim, apesar de ser o Alentejo do calor tórrido de Agosto, a temperatura era de três negativos e uma senhora lá confirmou que estava muito frio, mas era bom que viesse a neve que ela achava tão bonita, etc.
E assim, a tentativa de criar um casus jornalístico com acidentes, reclamações e desgraças, acabou em puro fracasso. Tudo porque a neve não veio, o frio não assustou ninguém…e também ninguém se lembrou de entrevistar algum dos sem abrigo que pernoitam por aí, deitados nas lajes cobertas com o cartão de alguma caixa espalmada e tapados sumariamente com uma manta de trapos surripiada a algum depósito do lixo!
Mas talvez nem valesse a pena. São sempre os mesmos a tentar ajudar ou a contactar estes sem-abrigo a quem uma vez, numa entrevista de noite de consoada muito luminosa, muito badalada, muito festivaleira e comemorativa, aqui há alguns anos, uma jovem jornalista de casaco felpudo (seria estagiária?) perguntava, de microfone em punho, deitando de vez em quando o olhar para a câmara do operador, a um desses infelizes meio desmaiado:
-Tiozinho, o senhor está a dormir?
E como ele não respondia, ou não queria:
-Tem frio? O senhor não ouve? Sente o frio?
Então ele virou ligeiramente a cabeça, deitou-lhe uns olhos de carneiro mal morto, salvo seja, como a querer dizer, sem abrir a boca:
--Não me chateies!
E ela insistia, ao ver o seu olhar simultaneamente revoltado e suplicante:
-O senhor está sozinho? Não tem família? Sabe que é noite de consoada?...
E ele, nada! O seu olhar cada vez se punha mais enigmático, enquanto ela continuava, com o microfone ameaçador:
-Está triste? Está triste?...
Não sei como terminou a entrevista (na realidade um monólogo!), que aquilo era demais para mim. Desviei os olhos do pequeno ecrã e já não me lembro se abandonei a sala, se mudei de canal ou desliguei o televisor.
A cena não se passava em Bragança, nem em Évora, mas numa gélida noite, véspera de Natal,
28-1-2007. Hoje, pelas onze e tal da manhã, caíram uns farrapitos envergonhados de neve em Lisboa e imediatamente a Comunicação Social entrou em cena, com todo o espalhafato,a mostrar a sua habitual eficiência profissional às populações ávidas de notícias. À falta de melhor…
(Enviado ao Público, em 28-1-2007)
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