segunda-feira, 24 de dezembro de 2007

Crónica circunstancial…

A VÉSPERA DO NATAL DE 2007

Com uma catarreira dos diabos e já farto de estar em casa a curtir conversas de ocasião, queixinhas sobre a colocação dos presentes junto ao tronco da árvore chinesa, e muitas outras coisas que não são para aqui chamadas, decidi sair, com destino inimaginável, a arejar….

O carro estava na rua, à minha espera, frio como gelo, o que fazia com que a minha tossidela se repetisse, cada vez com intervalos mais curtos. Mas esta carripana tem a sua solução própria e banal para estas coisas, pondo a funcionar, logo após a ignição, o ar condicionado automático, sempre regulado nos 22 graus, quentinho, como eu gosto. Ainda não consegui averiguar por quê, uma série de cerca de uma dúzia de espirros seguidinhos começa de mansinho, acelerando sempre a cada esforço que faço para acabar com ela, acabando subitamente, tão enigmaticamente como começou.

Claro que essa temperatura memorizada no automático não tem discussão quando ando sozinho. Mas, se a minha mulher vai ao lado, a sua primeira queixa é de que há calor em excesso e eu devo baixá-la:

-Como podes aguentar isto?

É escusado retorquir que o termómetro do exterior marca apenas 10, que eu sou friorento por natureza, como ela muito bem sabe, etc. Ouve e dá logo a sua sentença:

-Se não queres baixar a temperatura, vira os deflectores todos na tua direcção, que eu não posso receber esse ar quente directamente na cara.

Não tenho outro remédio. Então o fluxo de ar penetra-me nas narinas com alguma violência e começo a espirrar, a espirrar, a espirrar…E ela diz, então:

-Quando é que acabas com isso? Faz um esforçozinho…inspira com força e aguenta…não tens mesmo jeito nenhum! Outra vez…

A verdade é que, quando os espirros são fortes e a série demora mais tempo a passar, fico momentaneamente sem ver nada e o carro é guiado no piloto automático.

-Cuidado! Que se passa contigo? Quase ias para cima daquele carro…

Então eu passo-me e ameaço:

-Se não te calas, paro o carro mesmo aqui!

E ela, sem me dar tempo de executar a manobra:

Isso era o que devias ter feito, antes de sair do estacionamento! Que inconsciência! E agora, com este movimento e sem bermas, como queres parar?

-Não sei! Em cima da tua cabeça! Attt…chim!...

E, como por encanto, acabou a série.

Tal como agora, em que ia sozinho.

No primeiro cruzamento virei à esquerda, depois à direita, logo a seguir de novo à esquerda, automaticamente e, quase sem dar-me conta, encontrei-me metido numa fila enorme de carros, donde já não conseguia sair, na direcção de um grande centro comercial! Após dez ou quinze minutos de para-e-arranca, lá me decidi, que remédio, a procurar um lugar bem racionado num dos pisos do gigantesco estacionamento, tarefa bem difícil.

Estes dias, véspera de Natal, nas grandes cidades, são o diabo! Fica mal trazer o nome deste sátiro para o texto, numa altura em que toda agente deveria lembrar o nascimento do Menino-Deus. Mas, paciência! Até Jesus a perdeu ante os vendilhões do Templo! E quem sou eu para não barafustar com as filas de trânsito, nem com o vizinho que estacionou ao meu lado e roçou no guarda-lamas, nem com a menina da caixa que é uma lesma a despachar os clientes que me antecederam na fila interminável, nem com os carros que vão à minha frente colados uns aos outros, que não andam nem fazem sinais, finalmente com o comando da garagem que deve ter as pilhas a dar o berro…

Numa boa meia hora a roçar com os braços nos restantes compradores do hipermercado onde fora aterrar, a ouvir projectos, reclamações, queixas, gritos de crianças impacientes e censuras de adultos, muito mais…tornados visíveis e audíveis em vários idiomas, menos em chinês, lá consegui comprar uma tablete de chocolate fabricada pela Nestlé e importada da Alemanha, par não dizer que não trazia nada…

Guardei o carro, vi as horas e decidi que ainda era cedo para o regresso. Faltava pouco para as sete. Ainda havia tempo para dar um salto ao Chinês da esquina, a comprar as pilhas para o comando da garagem e, já agora, para os comandos das televisões, dos DVDs, do esquentador, dos relógios dispersos pelas salas…

Embiquei para o Chinês. Também estava cheio de gente das mais variadas idades, mas sobretudo senhoras que se atiravam, como gato a bofe, às árvores de Natal de fibra óptica que estão na berra, ao preço da chuva, muito mais baratas que as tradicionais…

Tradicionais, o quê? Onde é que essas já vão! Os incêndios nas florestas e a propaganda dos ecologistas quase acabaram com elas. As tradicionais já são, de há anos a esta parte, as plásticas, de montar na altura e dobrar para o ano seguinte…junto com a neve de algodão, as estrelinhas que piscam ao som da música, o Pai Natal feito em série, o Presépio de plástico muito bem disfarçado…

E pensando bem que mal há nisso?

Lembrei-me, não sem alguma nostalgia e alguma malícia à mistura, dos meus tempos de miúdo, com o prior da freguesia a invectivar duramente aqueles que montavam a árvore de Natal, que era uma ideia pagã (e nem sequer portuguesa!), que o Presépio era a representação do Nascimento, a única aprovada pela Santa Madre Igreja e a quem todos os católicos tinham obrigação de obedecer, se queriam salvar as suas almas...

Há poucos dias, farto já de ver a propaganda do Millenium BCP na Avenida dos Aliados, enfeitada com a badalada maior Árvore de Natal da Europa, já registada no Guiness e tudo, disse qualquer coisa à minha mulher que desta vez concordou comigo e consegui mudar de canal. Não fixei qual era, mas deu para nos extasiarmos, por breves minutos.

À nossa frente, ocupando todo o ecrã, a enorme Praça de São Pedro, diante do Vaticano, mostrava, bem perto do obelisco central, vários cardeais, com a pompa e a púrpura da ordem, procedendo à inauguração da Árvore de Natal lá do sítio, bem cheia de luzinhas e estrelinhas.

Não disseram qual era a proveniência, mas de certeza se tratava de material plástico, feita na China Comunista. Ou talvez não?!

O Mundo está completamente mudado. Se Cristo viesse cá de novo, era capaz de perder outra vez a paciência e zurzir nos vendilhões do Templo…Mas quem são os modernos vendilhões do Templo? O mais certo era partir para a China Comunista cuja bandeira tem estrelinhas -as mesmas que orientaram (desde o Oriente!) os Reis Magos da tradição - a pregar aos biliões de amarelos, que também são gente de Deus:

-Deixai vir a mim as criancinhas, que delas é o Reino dos Céus!

Por um momento, ultrapassei as minhas divagações e aterrei no balcão do Chinês com a pergunta sacramental,:

-Quanto custam estas pilhas?

-As pila custa três eros!...

Puxei do porta-moedas, mas lembrei-me de que as balanças electrónicas da casa de banho e da cozinha também não tinham pilhas, mas eram das de relógio que eu não tinha visto nas prateleiras. Perguntei de novo:

-Tem pilhas de relógio?

-Sim, ter. Qual quele?

E mostrou-me uma variedade de pilhas redondas de diversos diâmetros e espessuras…que os meus conhecimentos não davam para voltagens nem amperagens de miniatura.

Lá escolhi as que me pareceram mais de acordo com a minha memória visual, paguei, despedi-me e regressei a casa, contente por ter feito, no meio de tanta trapalhada, uma bela acção: comprar pilhas, sem as quais a habitação para por completo!

A minha mulher agradeceu-me com um beijo, quando lhe disse que trazia a pilha da balança electrónica da cozinha.

-Foi transmissão de pensamento! Como descobriste que fazia falta? Nem sabia como fazer o bolo, com a balança avariada!

-Sou adivinho!

E dirigi-me para o interruptor da árvore chinesa de fibra óptica que se mantinha apagada:

-Olha lá, não tens vergonha de manter isto apagado, a esta hora da noite?

O presépio da sala, industrialmente feito em série, ainda do tempo dos espertalhões mas já ultrapassados comerciantes americanos, já estava iluminado, com todos os figurantes em miniatura, pastores com ovelhas aos ombros incluídos, e o coro cantando:

Entrai, pastores, entrai

Na casa do Povoado,

Vinde adorar o Menino

Lá nas palhinhas deitado…

Etc…

Estava na hora. Tocaram a campainha e, dentro de momentos, filhos e netos estavam connosco para reunião familiar.

Acabou a escrita.

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