quinta-feira, 27 de dezembro de 2007

A ASAE

Alguns comentários dispersos

Durante bastantes anos, a ASAE, ou outro organismo equivalente com obrigação de inspeccionar as lojas, firmas, empresas, explorações da cadeia alimentar, lá ia cumprindo de mansinho a sua obrigação, tão de mansinho que uma boa parte dos vendedores nem davam por ela e os consumidores passavam a vida a atirar pedras à sua quase total ineficácia.

Pode parecer um exagero esta minha afirmação, mas a forma de estar em Portugal, geralmente enquadra-se no meio, bem no meio das circunstâncias. A ASAE não fugia à regra. Para uns, não actuava…e ainda bem. Para outros, não actuava, nem era de estranhar…e era o pior que podia fazer!

Se havia indícios de intoxicação alimentar nalguma escola, a culpa era da ASAE que não fazia nada…

SE as bolas de Berlim vendidas na praia, ou os pastéis de nata da pastelaria da esquina eram uma porcaria origem de futura diarreia, a culpa era da ASAE que só fiscalizava onde não era necessário…

SE as bicas do café eram servidas em chávenas com as marcas labiais de cliente anterior, a culpa era da ASAE que passava o tempo a jogar a bisca em vez de trabalhar como devia…

Se a ASAE deixava passar batatas podres, couves azedas, azeite de vários graus de acidez, a culpa era da ASAE que provavelmente deveria receber luvas dos agricultores, transportadores, distribuidores ou vendedores…

Se milhares de estabelecimentos, por esse país fora, estavam de portas abertas sem alvará, porque as Câmaras demoram anos a concedê-lo sem uma justificação plausível, a culpa era da ASAE que tudo permite…

Se, no campo da restauração, como agora se diz, os cidadãos não ligavam à lei, nem cumpriam as regras de higiene, nem pagavam os impostos devidos, a culpa era da ASAE

Podia estar aqui a apresentar situações conhecidas que encheriam páginas e páginas.

Não vale a pena. Primeiro, porque as situações irregulares são do conhecimento geral e depois porque muito boa gente ainda se riria na minha cara!

É o que está a acontecer com os cumpridores funcionários da ASAE que desde o princípio do ano, puseram de lado a conhecida e tão criticada permissividade e resolveram agir com um mínimo de rigor, ante situações aberrantes…que eram muitas.

Dura lex, sed lex!

A verdade é que, logo depois de uma breve época de aplausos, A ASAE se tornou rapidamente no alvo da crítica geral, no seu ataque sem piedade aos coitadinhos, aos artesãos às empresas familiares, aos feirantes, às tascas, aos ambulantes…e nem o encerramento compulsivo de um conhecido hipermercado conseguiu minorar o estigma já aplicado de só atacar os pobres e favorecer os poderosos…

A guerra passou a correr também na Internet, sobretudo a seguir a um discutível artigo jornalístico de A.B. no Público, culpando por atacado a ASAE, o Governo e sobretudo a CE, a que estávamos escravizados, e nos iria impedir de comer as couves do quintal e as bolas de Berlim do vendedor da praia, e obrigar a tomar a bica em copo de papel, tudo por motivos higiénicos, mas principalmente por pressão encapotada das grandes empresas dos países industrializados, etc…

Uma corrente de e-mails foi logo posta a circular, recolhendo assinaturas de protesto para entregar a um ministro qualquer…a defender hábitos antigos dos portugueses, mas sobretudo os pequenos comerciantes, os pequenos agricultores, os pequenos fornecedores, os pequenos infractores, etc., a pedir a remodelação do Governo que dava ordens brutais à ASAE, finalmente a demissão do seu director, a aprovação de leis e regulamentos mais humanos.

Paralelamente a este pedido com aspecto humanitário a que os portugueses são sempre extremamente sensíveis, recebi alguns e-mails reclamando em especial o caso da bica em copo de papel, um atropelo ao mais elementar tradicionalismo nacional! O mesmo ainda quanto ao fim anunciado da bola de Berlim vendida na praia por ambulantes e ao pastel de nata avulso, sem embalagem, crimes difíceis de perdoar…

A tasca da esquina que não lava as chávenas como deve ser, a mulher que faz os pastéis em casa, para meia dúzia de pastelarias de bairro, e o vendedor das bolas de Berlim cuja mulher trabalha de noite para encher a caixa que ele traz ao ombro, todos têm direito à vida, mesmo que a sua higiene por vezes deixe muito a desejar! Concordo, mas não sei como dar a volta ao texto!

Tinha eu uns doze ou catorze anos e apreciei casualmente, quando ia para o liceu, uma atitude «bárbara» dos fiscais que, tendo analisado sumariamente duas bilhas de leite de uns vinte litros cada uma, derramaram o líquido ali mesmo, no esgoto da valeta, ante os gritos das duas leiteiras e o protesto de vários populares indignados, sendo as infractoras obrigadas, ainda por cima, a ir ao posto de polícia…Só muito mais tarde percebi a essência do problema e, já na Faculdade, aprendi a investigar sumariamente aquela fraude, além do mais, nojenta e perigosa para a saúde pública, agora, no nosso tempo tornada incompreensível, com o leite homogeneizado, pasteurizado, conservado, analisado e embalado higienicamente em pacotes individuais selados, etc.

Lembro-me de que uma das pragas dessa época era o tifo, doença a que hoje nem damos já grande importância, nem à febre de Malta, nem ao carbúnculo, nem às diferentes febres intestinais, nem mesmo à tuberculose e a várias outras tão correntes num passado recente. Embora muito se deva aos antibióticos na erradicação e cura dessas maleitas, a verdade é que o factor principal no seu quase desaparecimento é a mudança radical dos conceitos de higiene e a sua aplicação, nem sempre pacífica!

Quem não se lembra do arroz guardado no depósito de madeira da mercearia, aviado aos clientes tanta vez cheio de gorgulho?

Quem não se lembra de um certo decreto de um passado recente que, contra gregos e troianos, obrigou os padeiros a manusear o pão com luvas ou sacos de plástico?

Ainda se vê por aí, apesar do enorme progresso verificado neste campo, muita porcaria tolerada. Há uns oito ou dez amos, máximo, fui convidado por um grupo de apreciadores de sabores divinais, a uma visita a uma conhecida casa de petiscos muito apreciados, no centro da Amadora, com uma clientela enorme, tão grande como as pequenas instalações situadas numa cave de acesso difícil, sem exaustão, onde se fazia fila desde a rua, pela escada de caracol, para arranjar mesa…Mesas e cadeiras eram de pinho mascarrados de nódoas de todas as cores, sem toalhas nem guardanapos, com pratos meio partidos, rasos de passarinhos fritos trazidos da fritadeira a gás postada em frente sobre um balcão de aspecto indescritível, tanto como o chão, as paredes e o tecto baixo de cimento grosseiro, tudo pintado de óleo queimado por todos os lados. Num dos cantos, um pipo de cinquenta litros fornecia vinho servido em copos a escorrer de água do enxaguamento prévio num alguidar. As carcaças eram atiradas sem cerimónia para as mesas dos comensais pelo dono e a mulher, ambos de aspecto desagradável e mãos com unhas avantajadas e de luto. Os ossinhos eram despejados num saco aberto dentro de um balde, no outro canto…

Provei apenas um passarinho frito, não me atrevi a beber o que quer que fosse e fiz um esforço tremendo para permanecer uma meia hora no local…jurando, à saída, para nunca mais.

Mas, na minha óptica, quem tem culpa de tudo isto não é a ASAE! Somos todos nós que pactuamos com estas mixórdias, que não as denunciamos ou até as escondemos, que defendemos os infractores e até os elogiamos, e pomos os fiscais nas ruas da amargura!

A nossa permissividade quanto à execução das leis é bem conhecida. Tão depressa queremos condenar os criminosos a prisão perpétua por dá cá aquela palha, como os fazemos de coitadinhos, frutos de um momento menos feliz, vítimas indefesas da sociedade ou até das autoridades…

Julgamos na base da lei, mas conforme a ocasião e as conveniências. É como se houvesse várias leis, dentro da mesma!

Há dois ou três meses, um conhecido criminalista da nossa praça e simultaneamente presidente de uma Câmara, escreveu um artigo comentando o exagero, o despropósito, que ele achava cómico, de alguns fiscais da ASAE que tinham feito intervenções na feira da sua localidade de gente tranquila, vestidos de colete anti-bala…

Mandei-lhe o meu comentário, compreendendo a sua posição de autarca defendendo e protegendo os seus munícipes que nele votam, mas discordando da sua opinião, acrescentando que eu, se fosse fiscal honesto e não alinhando em corrupções de ocasião, nos dias que correm, faria o mesmo! Que é preferível ser criticado por vestir o colete, do que chorado por levar um balázio no peito!

A ASAE que se cuide!

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