sexta-feira, 28 de dezembro de 2007

2006, o ano das escutas


Crónica de Camões e do Envelope 9

«Estava a linda Inês posta em sossego,

De seus anos colhendo doce fruto» …

Era assim que Camões, nos imortais Lusíadas, iniciava a sua descrição do drama de Inês de Castro, vítima de um certo nacionalismo exaltado, bacoco e intriguista que haveria de fazer escola no nosso país, desde a época da consolidação da independência até aos nossos dias, sete séculos depois dessa saga!

Os sopradores de segredos da Inquisição, os lacaios dos intendentes do reino, os agentes da PIDE e tantas outras figuras que vieram protegendo a Pátria ao longo dos séculos, dos inimigos internos e externos, deram lugar, nos dias de hoje, à espionite dos telemóveis dos cidadãos pelas polícias, a coberto de licenças judiciais por vezes fictícias, oportunistas, rocambolescas, incríveis.

Milhares e milhares de escutas telefónicas são, por sua vez, devidamente autorizadas, recolhidas, seleccionadas e ouvidas…por uns quantos gatos pingados, os esforçados donos da verdade que nem tempo têm para ler as montanhas de processos que se acumulam nas suas secretárias, quantas vezes destinadas à prescrição legal…

Eu prensava, antes de ver nos jornais, quase diariamente, o repertório das escutas secretas passado na praça pública, que a figura do bufo tradicional no nosso país tinha sido ultrapassada, com o 25 de Abril. Enganava-me redondamente. A situação agora é muito mais refinada!

Cassetes da justiça na posse de particulares, documentos de tribunais nos caixotes de lixo dos ecopontos, envelopes com listas de chamadas interceptadas e certamente ilegalmente violadas por quem de direito, segredos de justiça publicados na praça pública todos os dias por esses famigerados jornalistas que iriam roubá-los à polícia, aos magistrados, aos tribunais, segundo autoridades judiciais estrategicamente incapazes de guardá-los a sete chaves, ou de efectuar inquéritos… bizarra forma de resolver problemas em Portugal!

D. Afonso IV deixou-se levar pelos patrioteiros da ocasião que na sua óptica eram excelentes e avisados patriotas. Naquele tempo não havia computadores, nem cassetes, nem telemóveis, mas as ordens, boas ou más, eram de execução mais célere e a justiça não era exímia em fugas estratégicas de segredos, nem deixava nunca prescrever os prazos.

«Tal contra Inês os brutos matadores» …

Continuava assim Camões, com puro realismo, mostrando que na época os costumes eram bárbaros, tão bárbaros como hoje são permissivos desde o cidadão comum até à própria justiça que deles e para eles é feita.

O caso do envelope 9 e do inquérito que se lhe seguiu, relatado pela imprensa nacional até à saciedade, é o caso mais vergonhoso de incompetência de uma Procuradoria a cargo, segundo se diz e eu creio, de homens honestos e bem intencionados, muito à portuguesa, como sempre, neste Portugal dos Pequeninos… que de boas intenções está o mundo cheio!

E assim, cá nos vamos mantendo, como já dizia o mesmo Camões nos fins do século XVI, nas vésperas da entrega do reino aos espanhóis:

«Nesta apagada e vil tristeza» …

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