terça-feira, 18 de dezembro de 2007

76 cêntimos por dia!


A BICA, O SALÁRIO MÍNIMO NACIONAL E O BENFICA

C. M.: Salário mínimo sobe 76 cêntimos por dia…

Em termos práticos dá para pagar uma bica e uma carcaça na padaria…

«O título é muito interessante! O dinheiro atribuído é insignificante. Mas podiam, já agora, colocar outro ainda mais sugestivo: 9,5 cêntimos por hora de trabalho e assim por diante. Então o câmbio oficial de referência para os senhores é a bica? Estavam desgraçados os pobres do S. M. N., se regessem as suas compras por aí! Eu ganho mais e tomo café em casa, de marca branca. Ou não tomo!»

Foi este o meu comentário ao C.M., limitado aos caracteres que me permite. Mas apetecia-me continuar, pelas duas razões referidas: a primeira, porque o título é, propositadamente redutor; a segunda, porque o termo arranjado para comparação, no subtítulo, é simplesmente anacrónico, do meu ponto de vista.

Efectivamente, todas as frases são factualmente verdadeiras mas, como sempre, sujeitas a diversas interpretações, portanto controversas. É bem difícil, concedo, ser-se jornalista a cem por cento de ética, em certas notícias.

Neste caso, o senhor jornalista redactor, quase tenho a certeza, está incluído, no mínimo, na classe média, com ordenado várias vezes o do S. M. N., habituado à bica, como o pobre à água da torneira, quando a tem. Por isso a escolha da bica, como termo de comparação, ou letra de câmbio, poderá servir para a classe média já que, para os mais necessitados, a bica é um manjar dos deuses, em fim de festa! Também há aqueles que se deleitam com proventos de muitos salários mínimos; esses bebem muitas bicas ao dia…e outras coisas muito mais caras.

Mas pode colocar-se a questão de outra maneira mais favorável ao jornalismo de notícia fácil. Quem ganha o salário mínimo não tem cheta para comprar o Correio da Manhã, nem uma só vez por mês, se for económico, tiver senso comum e não viva às custas da família. Quem compra o jornal é, no mínimo, um membro da classe média e muito poucos, no nosso país, o compram, mesmo assim, diariamente.

Poderei admitir que, provavelmente, mesmo inconscientemente, a notícia foi preparada para eles, para os que têm dinheiro para o vício da bica? Já agora, não seria adequado referir também outros vícios da classe média, como por exemplo o tabaco? Para quantos cigarros dá o aumento diário do S. M. N.?

Para o próximo ano, só para dar apoio ao autor da notícia, vou mandar uma carta ao Governo, com cópias aos Sindicatos e à Cip, propondo o aumento do S. M. N em número de bicas, e ainda uma outra às redacções dos jornais nacionais, afim de prepararem antecipadamente o comentário adequado …Refiro-me, claro está, às bicas da tasca da esquina, que as das estações de serviço das auto-estradas não se destinam ao Zé Pagode, mas à classe média alta portuguesa, ou aos que se preocupam em imitá-la, aos sábados e domingos!

Mas nem só de bicas ou de cigarros, vive o homem, ainda que muitos abusem disso! E estes não é à custa do S.M.N., de certeza…

Então como deveria ter sido redigida a notícia, para ser totalmente isenta? Nem eu sei. Só sei que, se fosse eu a redigi-la, não teria incorrido no exagero ridículo da bica, um atentado e um gozo, mesmo a baixo custo, à pobreza escondida que por aí grassa.

Agora, vira o disco e toca o mesmo...

Como resido nos contrafortes ocidentais de Lisboa, tenho fatalmente que passar pela Segunda Circular, quando me dirijo à Gare do Oriente ou por aí. E, se é sábado ou domingo de tarde, tenho de certeza que sofrer o meu Calvário, com a afluência dos furiosos da bola que ocupam a estrada a pé, vindos de metro, de carro, de autocarro, de trotineta, ao Estádio do Benfica!

Gostaria de saber como é que muitos deles fazem esticar o S. M. N. de forma a poder entrar na sua famosa Catedral da Bola e desfrutar do desafio, prévia aquisição dos barretes, cachecóis, camisolas, bandeiras, chaveiros, carteiras, cornetas e bebidas com as cores ou a águia do Glorioso estampada, este ano quase de certeza destinado a disputar com os leões do Sporting o Título Nacional de Futebol da 2ª Circular, na análise de um perspicaz comentarista desportivo da nossa praça.

Longe vão os tempos em que o Benfica dependia, em boa parte, do pé descalço nacional que fornecia as palmas, os vivas, os jogadores a pataco e algumas cenas com piropos indecentes e pancadaria à mistura, a que não seria estranha a utilização da pinga a martelo, para animar as hostes, e que por vezes até seria em excesso. Daí que o Benfica tenha sido chamado, pelos inimigos vizinhos mais figadais (futebolisticamente falando), o Clube dos Homens do Garrafão! Até que o Benfica destronou o Sporting dos Violinos e começou a ganhar campeonatos em série e até duas taças de Campeão da Europa, dizendo então, orgulhosamente, os milhões de adeptos que, quem não era do Benfica, não era bom português, nem bom chefe de família…

Nessa altura, nem sequer havia salário mínimo! Nem muitas outras necessidades imprescindíveis.

Coisas incompreensíveis desta vida… mais curta que comprida, como diz o Zé.

Deixemos, pois, o Salário Mínimo Nacional para segundas núpcias, nas imediações da Segunda Circular. Muito mais importante aqui é o Futebol que talvez consiga equilibrar um dia o nosso orçamento, com a exportação de muitos Figos, Decos, Cristianos, Tiagos, Simãos, Sousas, Costas e tantos outros talentos do Coicebol, como dizia, há cinquenta e tal anos atrás, um saudoso professor de Português que eu tive, na realidade um cegueta incapaz de prever o futuro grandioso do País nesta disciplina onde o desgraçado Salário Mínimo Nacional é cruelmente ridicularizado todos os dias até à exaustão.

Ali mesmo ao lado do Estádio do Glorioso, com os seus 60.000 lugares ocupados a peso de ouro (não sei como!) nos dias importantes, fica o maior Centro Comercial Português, dentro do qual a sua loja âncora -o Hipermercado Continente –faz diariamente o seu negócio milionário. Nas saídas das suas caixas registadoras, de tempos a tempos, almas dedicadas do Banco Alimentar Contra a Fome pedem pacientemente aos clientes a dádiva de alguns géneros alimentícios para ajuda daqueles que, muito provavelmente, nem salário mínimo têm, nem bica, nem nada! …

1 comentário:

whocares disse...

" Então como deveria ter sido redigida a notícia, para ser totalmente isenta? Nem eu sei. Só sei que, se fosse eu a redigi-la, não teria incorrido no exagero ridículo da bica, um atentado e um gozo, mesmo a baixo custo, à pobreza escondida que por aí grassa. "

Bem, poderia sempre optar-se por um litro de leite sem marca, produto branco de um dos hipers mais económicos e uma carcaça na padaria antiga da esquina, que com sorte e com o bom coração da padeira ofereceria outra ? Sempre dava para umas sopas de leite, para mitigar alguns estomagos que por aí andam a rebentar de fome. E não parecia mal a ninguem, nem gozo, nem provocação.
Assim, esta da bica, tambem me provocou alguma azia.

Coisinhas deste Pais, cada vez a pensar mais pequeno.