C. M.: Salário mínimo sobe 76 cêntimos por dia…
Em termos práticos dá para pagar uma bica e uma carcaça na padaria…
Efectivamente, todas as frases são factualmente verdadeiras mas, como sempre, sujeitas a diversas interpretações, portanto controversas. É bem difícil, concedo, ser-se jornalista a cem por cento de ética, em certas notícias.
Neste caso, o senhor jornalista redactor, quase tenho a certeza, está incluído, no mínimo, na classe média, com ordenado várias vezes o do S. M. N., habituado à bica, como o pobre à água da torneira, quando a tem. Por isso a escolha da bica, como termo de comparação, ou letra de câmbio, poderá servir para a classe média já que, para os mais necessitados, a bica é um manjar dos deuses, em fim de festa! Também há aqueles que se deleitam com proventos de muitos salários mínimos; esses bebem muitas bicas ao dia…e outras coisas muito mais caras.
Mas pode colocar-se a questão de outra maneira mais favorável ao jornalismo de notícia fácil. Quem ganha o salário mínimo não tem cheta para comprar o Correio da Manhã, nem uma só vez por mês, se for económico, tiver senso comum e não viva às custas da família. Quem compra o jornal é, no mínimo, um membro da classe média e muito poucos, no nosso país, o compram, mesmo assim, diariamente.
Poderei admitir que, provavelmente, mesmo inconscientemente, a notícia foi preparada para eles, para os que têm dinheiro para o vício da bica? Já agora, não seria adequado referir também outros vícios da classe média, como por exemplo o tabaco? Para quantos cigarros dá o aumento diário do S. M. N.?
Para o próximo ano, só para dar apoio ao autor da notícia, vou mandar uma carta ao Governo, com cópias aos Sindicatos e à Cip, propondo o aumento do S. M. N em número de bicas, e ainda uma outra às redacções dos jornais nacionais, afim de prepararem antecipadamente o comentário adequado …Refiro-me, claro está, às bicas da tasca da esquina, que as das estações de serviço das auto-estradas não se destinam ao Zé Pagode, mas à classe média alta portuguesa, ou aos que se preocupam em imitá-la, aos sábados e domingos!
Mas nem só de bicas ou de cigarros, vive o homem, ainda que muitos abusem disso! E estes não é à custa do S.M.N., de certeza…
Então como deveria ter sido redigida a notícia, para ser totalmente isenta? Nem eu sei. Só sei que, se fosse eu a redigi-la, não teria incorrido no exagero ridículo da bica, um atentado e um gozo, mesmo a baixo custo, à pobreza escondida que por aí grassa.
Como resido nos contrafortes ocidentais de Lisboa, tenho fatalmente que passar pela Segunda Circular, quando me dirijo à Gare do Oriente ou por aí. E, se é sábado ou domingo de tarde, tenho de certeza que sofrer o meu Calvário, com a afluência dos furiosos da bola que ocupam a estrada a pé, vindos de metro, de carro, de autocarro, de trotineta, ao Estádio do Benfica!
Gostaria de saber como é que muitos deles fazem esticar o S. M. N. de forma a poder entrar na sua famosa Catedral da Bola e desfrutar do desafio, prévia aquisição dos barretes, cachecóis, camisolas, bandeiras, chaveiros, carteiras, cornetas e bebidas com as cores ou a águia do Glorioso estampada, este ano quase de certeza destinado a disputar com os leões do Sporting o Título Nacional de Futebol da 2ª Circular, na análise de um perspicaz comentarista desportivo da nossa praça.
Longe vão os tempos em que o Benfica dependia, em boa parte, do pé descalço nacional que fornecia as palmas, os vivas, os jogadores a pataco e algumas cenas com piropos indecentes e pancadaria à mistura, a que não seria estranha a utilização da pinga a martelo, para animar as hostes, e que por vezes até seria
Nessa altura, nem sequer havia salário mínimo! Nem muitas outras necessidades imprescindíveis.
Coisas incompreensíveis desta vida… mais curta que comprida, como diz o Zé.
Deixemos, pois, o Salário Mínimo Nacional para segundas núpcias, nas imediações da Segunda Circular. Muito mais importante aqui é o Futebol que talvez consiga equilibrar um dia o nosso orçamento, com a exportação de muitos Figos, Decos, Cristianos, Tiagos, Simãos, Sousas, Costas e tantos outros talentos do Coicebol, como dizia, há cinquenta e tal anos atrás, um saudoso professor de Português que eu tive, na realidade um cegueta incapaz de prever o futuro grandioso do País nesta disciplina onde o desgraçado Salário Mínimo Nacional é cruelmente ridicularizado todos os dias até à exaustão.
Ali mesmo ao lado do Estádio do Glorioso, com os seus 60.000 lugares ocupados a peso de ouro (não sei como!) nos dias importantes, fica o maior Centro Comercial Português, dentro do qual a sua loja âncora -o Hipermercado Continente –faz diariamente o seu negócio milionário. Nas saídas das suas caixas registadoras, de tempos a tempos, almas dedicadas do Banco Alimentar Contra a Fome pedem pacientemente aos clientes a dádiva de alguns géneros alimentícios para ajuda daqueles que, muito provavelmente, nem salário mínimo têm, nem bica, nem nada! …
1 comentário:
" Então como deveria ter sido redigida a notícia, para ser totalmente isenta? Nem eu sei. Só sei que, se fosse eu a redigi-la, não teria incorrido no exagero ridículo da bica, um atentado e um gozo, mesmo a baixo custo, à pobreza escondida que por aí grassa. "
Bem, poderia sempre optar-se por um litro de leite sem marca, produto branco de um dos hipers mais económicos e uma carcaça na padaria antiga da esquina, que com sorte e com o bom coração da padeira ofereceria outra ? Sempre dava para umas sopas de leite, para mitigar alguns estomagos que por aí andam a rebentar de fome. E não parecia mal a ninguem, nem gozo, nem provocação.
Assim, esta da bica, tambem me provocou alguma azia.
Coisinhas deste Pais, cada vez a pensar mais pequeno.
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