domingo, 29 de março de 2009

SOL E SOMBRA


Visões espúrias a preto e branco

A vida a preto e branco é simplesmente uma miragem, embora o subconsciente nos segrede, de vez em quando, que assim é que é, ou assim é que deve ser, ponto final. Alguns deixam-se embalar nessa cantiga, e por isso têm aparecido ao longo dos séculos, exageros e aberrações incríveis. As consequências da insistência sistemática nas visões espúrias do mundo a preto e branco absolutos são as mesmas que conduzem às guerras entre nações e, no seu aspecto mais radical, às limpezas étnicas, aos holocaustos, às lutas civis ou de carácter religioso.

As religiões proclamando, todas elas, o entendimento entre os homens, a tolerância, a piedade e a misericórdia, não cedem um milímetro nos seus princípios que julgam certezas infalíveis e defendem até à morte. Pior ainda é a tentativa, quase sempre falhada, de impor pela violência física as suas crenças aos semelhantes que com elas não estão de acordo. A História tem mostrado quão vãs são essas intenções, apesar de cimentadas em êxodos, ostracismos, castigos e crueldades sem conta, prisões atrozes e muitos milhões de mortos.

A Humanidade já devia ter aprendido ao longo de milénios de erros dolorosos e recuperações lentas e difíceis, que não é por esse caminho que se transforma para melhor, que não é pela via da imposição religiosa ou política de ideias ou normas tidas como indiscutíveis que se cultiva, se regenera, ou se torna mais virtuosa, antes pela abertura do espírito às descobertas da Ciência e do Pensamento, ao Estudo permanente e sem preconceitos dos inúmeros problemas que a afligem e da melhor forma de resolvê-los.

E no entanto, o recurso à violência ainda hoje se encontra enraizado ou simplesmente incentivado por motivos religiosos ou interesses económicos e políticos, depois de tantas lições que deviam ter sido aprendidas, trazendo à maioria das populações a desgraça, a fome, a miséria e a intranquilidade, à custa do gozo, do egoísmo e da ambição desmedida de uns quantos oportunistas que se julgam iluminados...

Todas estas contradições parecem estar actualmente reunidas na guerra, real ou silenciosa, de cariz económico, racial, político-religioso, movida pelo Islamismo contra a Civilização Ocidental, eventualmente o próprio Cristianismo.

Responder da mesma maneira, portanto, não sei se será a melhor solução. Combater um radicalismo com outro não irá conduzir a Humanidade à paz dos espíritos, a única definitiva mas que não pode ser imposta pela força. As desgraças sem fim da Palestina, do Afeganistão e do Iraque são disso exemplos flagrantes. O mal foi feito e remediá-lo continua a ser muito difícil, ou será mesmo impossível, anos e anos passados.

A tentação de intervir no Irão, na Coreia do Norte e noutros pontos do Globo, ainda não está totalmente posta de parte pela omnipotente administração americana, a qual, de vez em quando parece esquecer-se da guerra do Vietnam, onde a luta contra o comunismo foi bandeira hasteada furiosamente, levada até à insanidade, como se o Mundo acabasse ali mesmo. Terminou com tristes resultados. Agora, ao ver nas notícias a celebração de acordos comerciais entre os Estados Unidos e o Vietnam, e a abertura do país ao turismo internacional, poucos ficarão convencidos ainda da utilidade desse cataclismo no Sudeste Asiático que acarretou milhões de mortos e estropiados e de que alguns, confortavelmente instalados na vida, continuam ainda a não aprender a lição.

Também por cá, o Estado Novo incorreu na tal visão espúria do mundo a duas cores, chegando a colocar nos selos de correio o lema de tudo pela nação, nada contra a nação, tendo subjacente outro mais egoísta de quem não é por nós, é contra nós, que a PIDE se encarregava de lembrar constantemente aos cidadãos, privando de sol os discordantes e metendo-os à sombra do Limoeiro. Felizmente, no Portugal de hoje, sol ou sombra só na praça de touros e, mesmo assim, pela escolha dos espectadores.

Recorda-se agora o infausto desastre da Ponte das Barcas, no Rio Douro, onde cerca de 4000 habitantes do Porto, acossados pelas tropas de Soult que invadiam a cidade, morreram afogados. De nada valeu a Soult, reforçado com tropas espanholas e aureolado pelo prestígio de Napoleão, efectuar a segunda invasão francesa de Portugal, com o seu rol de desgraças e morticínios. Não conseguiu atravessar para Vila Nova de Gaia, e teve que retirar para Espanha, ele próprio perseguido pelo exército anglo luso e acossado por uma guerrilha que não lhe deu tréguas. A terceira invasão francesa, no ano seguinte, foi detida também, depois das batalhas do Buçaco e das Linhas de Torres, demonstrando a Napoleão que de nada servira a sua teimosia de mandar neste cantinho do Ocidente.

O conjunto de guerras de que o Imperador dos Franceses foi promotor por essa Europa fora, originou 15 milhões de mortos de quase todos os países que o aceitaram ou foram vítimas da sua visão a preto e branco. Quem pode aceitar que esta hecatombe justifique as estátuas, o túmulo gigantesco e os monumentos sumptuosos que desde a sua morte foram construídos em sua honra, numa França que ele deixou finalmente exausta e vencida?

O monumento singelo aos mortos do desastre da Ponte das Barcas, no Cais da Ribeira do Porto, esse sim, continuará a perpetuar a memória dos que lutaram contra a tirania de quem desejava impor a sua sombra a um pequeno país que depreciava e elegeu como vítima, mas cheio de sol, de liberdade e de gente heróica.

Apenas alguns metros mais acima, num clima de paz e colaboração que sempre deveria existir entre as nações, Gustave Eifel, um francês também célebre, mas desta vez por grandes projectos inovadores em várias partes do Mundo, planeou e executou a notável ponte metálica de D. Luís I, emblema da Cidade do Porto.

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