quinta-feira, 19 de março de 2009

À BEIRA DO ABISMO


A tendência para a crise e o D. Sebastião

Desde o berço da nacionalidade, Portugal esteve sempre à beira do abismo, umas vezes real, outras imaginário. A tendência para o abismo foi sempre uma constante, e o escape no último momento só uma vez claudicou, em 1580, com a perda da independência durante sessenta anos.
Passada a euforia da Restauração e, depois, a febre dos diamantes do Brasil, só com mão de ferro o Marquês de Pombal conseguiu fazer reformas importantes, algumas com efeitos a longo prazo que ainda hoje são visíveis. A crise das invasões francesas acabou por ser resolvida com custos enormes, mas trouxe inovações tremendas à vida social e política da Nação. De então para cá, Portugal nunca mais voltou a ser o que era, para o bem e para o mal.
A partir do fim da guerra civil da década de 30, parecia que o liberalismo vencedor iria finalmente conduzir o país na via das reformas de fundo que urgentemente necessitava. Algumas foram feitas, mas muitas mais deveriam ter sido terminadas e outras nunca chegaram a ser iniciadas. A discussão, a contestação permanente, a fragilidade dos governos, o compadrio e as revoluções não permitiram mais. A queda do regime monárquico era previsível.
A crise por todos então badalada e instalada teria que ser dominada, mas resultou no seu prolongamento sem fim à vista durante a Primeira República. Foi preciso vir outra vez alguém com mão de ferro, para meter os portugueses na ordem, afastar o país do fio da navalha onde se equilibrava perigosamente. De qualquer maneira, as circunstâncias e alguns erros costumeiros fizeram com que Portugal viesse de novo colocar-se à beira do abismo, de que só a entrada na CE conseguiu salvá-lo.
Gastos os milhões então e depois recebidos, grande parte sem honra nem proveito ou com proveito de alguns, eis de novo Portugal exposto à crise, agora acentuada pelos efeitos de uma gravíssima crise financeira e económica mundial, de consequências ainda imprevisíveis.
Os governos em todo o mundo esbracejam com frenesim, em várias direcções, sobretudo reúnem-se e estudam medidas de contenção e reforma do sistema. Isso não foi a tempo de impedir que alguns bons alunos tomados ainda há pouco como referência pelos gurus da economia portuguesa, especialmente os que se encontravam de fora das cadeias de comando, caíssem praticamente na banca rota, num fosso de que tardarão a sair.
Como de costume, Portugal, que nunca saiu da crise na boca de alguns, entrou nela em força, definitivamente, segundo outros, esbraceja na borda do abismo, segundo terceiros, sem possibilidades de salvação de acordo com os mais pessimistas. Mas o que me entristece não são estes comentários dos profetas das desgraças os quais estou cansado de ouvir desde a minha meninice, com os habituais avisos para a crise económica, social, moral e de valores…
O que me entristece, verdadeiramente, é o derrotismo permanente dos sábios, ampliado pelos média, feito lugar comum da população em geral. O que me deixa perplexo é a apatia de todos, a badalação permanente e excessiva sobre tudo e nada, a questionação sistemática das leis, dos governos, das autoridades públicas ou privadas a todos os níveis, com base numa suposta liberdade que não é mais que a falta de compreensão da verdadeira liberdade democrática. O que me amargura de verdade é que ninguém assuma as suas responsabilidades como cidadão, que cada um procure sistematicamente atirar as culpas das dificuldades para quem está acima, que uma boa parte dos portugueses se entretenha, simultaneamente, a tirar proveito das falhas legais existentes, e a maioria ocupe o tempo livre na maledicência do país, pouco contribuindo para a sua regeneração.
Um dos paradigmas que se tornou em obsessão geral, desde meados do século XIX, é a necessidade de reformas profundas, em Portugal. Nada escapa. E contudo, essas reformas profundas nunca, salvo raríssimas excepções, conseguiram ser postas em prática, a não ser por governos autoritários e de forma muito parcial, como o Estado Novo. Mas também ele falhou, a partir de certa altura.
Agora, com o país vivendo em regime democrático, onde era suposto que a liberdade e o civismo nacional iriam levar a melhor sobre a habitual «bandalheira» deixada pelo vazio de poder, todos se tornaram sábios e todos discutem tudo, mas nunca conseguem pôr-se de acordo com nada, excepto dizer alto e bom som que tudo está mal. Pior ainda, pouco ou nada conseguem fazer de jeito, e a custos tremendos.
É fácil, claro, dizer permanentemente que a crise é da Educação e Ensino, que os Bancos são uma corja de ladrões, que a Polícia se esconde atrás das secretárias, que as Empresas abrem falências fraudulentas e os Trabalhadores pagam sempre a crise, que o défice externo é enorme, que os subsídios não chegam nunca, que há fome por aí, que não há médicos de família suficientes, etc., etc., enfim, que a vida está difícil, que todos sabiam há muito que a crise iria acontecer e que os governos não fizeram nada para evitá-la ou não fazem nada para mitigá-la…
Mas, independentemente do partido que esteve ou está no Governo, qualquer medida a aplicar, por pequena ou por mais justa que seja, é sempre de difícil execução, provavelmente pelos eventuais interesses privados postos em causa, mas essencialmente pela falta de civismo dos portugueses em geral, apesar da sua aparente passividade. A burocracia existente também colabora bastante.
É curioso ouvir os personagens das mesas redondas ou quadradas com que as TVs nos brindam. Ontem, por exemplo, um sábio dizia que o problema principal estava na reforma urgente do sistema partidário português, mais precisamente dos próprios partidos, coisa que não há ninguém que não diga, por esse país fora, mesmo que não saiba ler nem escrever. Disse também que antigamente os partidos tinham menos clientelismo e mais gabinetes de estudo, mas que actualmente não tinham capital para isso…embora, por outro lado, funcionassem através das Jotas, como início do carreirismo político em voga, etc.
Há dias outro sábio lançava impropérios contra os investimentos previstos, os altos salários da banca, as fracas medidas adoptadas para a contenção da crise, do desemprego e da miséria social.
Um terceiro atirava-se ao ar, com os altos salários que tinham sido negociados e aprovados para a função pública, os mesmos que há três meses apenas eram considerados baixíssimos pelos analistas de serviço, excepção feita aos ligados ao patronato…
Um quarto atira-se às estatísticas governamentais, às previsões falhadas ou à falta delas, ou ainda à desvalorização das que tiveram a infelicidade de ser acertadas.
Um quinto clama contra a Justiça…mas justifica logo, pelo sim pelo não, que a culpa é apenas das leis que estão todas mal feitas, que a Assembleia e os deputados são todos uns ignorantes, uns malvados que deixam sempre vírgulas ou parágrafos de interpretação duvidosa para defender-se da eventual corrupção ou das suas trapalhadas políticas…
Um sexto atira-se ao Código Penal, aprovado pelos dois maiores partidos, como causa de todos os males que ocorrem no Ministério Público e não só.

Um sétimo berra contra o Ministério da Educação, as avaliações de professores, o estatuto de carreiras…
São todos contra todos. Vale tudo menos tirar olhos e, mesmo assim, vontade não faltaria a alguns…
Enfim, poderia estar aqui a enumerar lugares comuns para todos os gostos, e até eu próprio poderia também subscrever outros que não foram citados, de tão comuns que eles são, de tão inócuos que eles também são na resolução das dificuldades com que a nação se debate.
Porque o mal não está na Democracia, não está no Presidente, não está na Assembleia, nos Partidos ou nos Governos, nas Autarquias, na Justiça, nas Autoridades em geral, nas Organizações Estatais ou Privadas, nas Empresas, mas nos Pais, nas Escolas, no Civismo Nacional, no lastro de um analfabetismo ultimamente transformado numa iliteracia aberrante, na insignificância da riqueza criada…
Não posso deixar de lembra-me dos sábios e dos letrados do final do século XIX, senhores dos média da época, onde se entretinham a escrever artigos mordazes e derrotistas uns contra os outros ou contra as correntes políticas e governos que representavam. Como tudo me parece igual, nos dias de hoje!
Almeida Garret insurgia-se contra a construção da linha-férrea de Lisboa ao Porto, porque era cara e só tirava dois dias à diligência.
Os Professores da Universidade de Coimbra não permitiram que o comboio passasse sequer ao lado na cidade, porque estorvava o estudo aos estudantes, o seu silêncio e o seu bucolismo.
Eça atirava-se aos políticos do tempo, como gato a bofe, ora porque sim, ora porque não, igualzinho a alguns escritores e média hoje de serviço.
Ramalho Ortigão clamava contra a crise, mandava as célebres farpas e punha diariamente os políticos no pelourinho, por dá cá aquela palha.
E, no entanto, nessa altura como agora também poderá acontecer, o que todos foram capazes de fazer, com as suas patacoadas de cátedra, foi ajudar o país a colocar-se mais perto do abismo. Porque não foram capazes de gerar consensos, devido aos seus próprios interesses, pessoais ou partidários.
Como a maioria do Povo português, não tenho neste momento qualquer dúvida de que nunca será nenhum destes oráculos sábios de retaguarda que conseguirá afastá-lo desse ponto crítico, porque não se chegam à frente, porque nada mais sabem que ditar sentenças, falar, falar, falar, para gente que não vê os programas ou que não lhes liga nenhuma. É preciso dar o corpo ao manifesto (coisa que politicamente não sabem nem querem saber), e fazer, fazer, fazer… A responsabilidade moral dos sábios de pantufas, pela sua passividade e incapacidade de acção prática, não pode deixar-se abafar pelas «boutades» ou pelos gritos que emitem, da mesma forma que as responsabilidades políticas dos maus actos de governação nunca poderão ser escamoteadas por uns quantos sucessos, nem a corrupção dos aproveitadores do sistema deverá ser desvalorizada na Justiça, nem a falta de empenho dos cidadãos, com a justificação de que o vizinho também fez ou não faz…
Todos somos responsáveis por este país, uns mais que outros, como diria J. Orwell. Tanto mais, quanto mais sabemos ou podemos, e nada fazemos.
Feliz ou infelizmente, Portugal ainda não conseguiu ultrapassar a sua dependência dos heróis salvadores, ou dos executores providenciais de reformas e de obras de fundo, à custa de algumas quantas cabeças. A prová-lo lá está a estátua do Marquês de Pombal na Rotunda Monumental de Lisboa, com a memória bem enaltecida na maior estátua erguida no País, que faria inveja ao Fundador da Nacionalidade, se voltasse a este mundo.
Entretanto, cá estamos tranquilamente, ditando soluções para as paredes ou jogando a bisca, à lareira, alguns dos mais causticados pela crise já pedindo esmola pelas esquinas, mas todos à espera da chegada (talvez numa manhã de nevoeiro) do D. Sebastião…
Azar, que em 1580 apareceu Filipe II de Espanha.

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