domingo, 15 de março de 2009

HERÓIS DA ROTUNDA


As placas toponímicas sem rosto

Dizia um artigo que acabei de ler, de um presumível neoderrotista, passadista encartado:
Antigamente, dar nome a uma rua pressupunha um feito distinto. Basta passear por aí: políticos, militares, escritores ou artistas enfeitam as nossas cidades porque o mérito era coisa séria.
Tudo mudou: num país onde o mérito não existe e a vulgaridade igualitária abunda, quem sobra? Sobram, como muito bem defenderam os autarcas Carlos Encarnação e Moita Flores, duas mulheres vítimas de violência doméstica, que terão os seus nomes a enfeitar a toponímia de Coimbra e Santarém.
Nada mais verdadeiro e mais falso ao mesmo tempo que a afirmação do primeiro parágrafo. Ou o articulista foi demasiado superficial na apreciação, ou pretende passar uma mensagem a alguém, o tal recado, como agora se diz por aí.
Percorrendo as esquinas das nossas povoações, desde as aldeolas até à capital, o que mais se pode ler nas placas toponímicas de rua são nomes de pessoas, de coisas e de animais, e ainda de números, alcunhas, países, cidades ou simplesmente localidades ou lugarejos, conceitos diversos, feitos heróicos ou aberrantes, indivíduos anormais, datas de factos importantes ou mesquinhos, enfim, tudo o que é possível imaginar!
Em Lisboa, por exemplo, desde a Rua da Bica do Sapato, a Travessa do Funil, a Rua do Forno do Tijolo, a Rua Vinte e Nove ou a Azinhaga do Monturo, a Travessa do Fala Só, até à Alameda Afonso Henriques, à Avenida da Liberdade, ou à Rua Luís de Camões, tudo é possível, numa escala nunca vista por quem se der ao trabalho de espiolhar atentamente o roteiro da cidade. Dizer que antigamente, dar o nome a uma rua pressupunha um feito distinto é uma enormidade tão grande que não cabe na vastidão deste país onde o individualismo feroz, e consequentemente a diversidade e o anacronismo, se fundem para contrariar, em todos os capítulos, aqueles que pretendem pôr ordem nos conceitos ou reduzir tudo a esquemas organizados. E este facto não se manifesta apenas nas ruas. Ainda há pouco, Miguel Esteves Cardoso escreveu um artigo acutilante e jocoso sobre os nomes das Terras em Portugal, onde faz um retrato fiel, simultaneamente triste e hilariante, da idiossincrasia do nosso povo, no que a este tema se refere.
Portanto, dizer ainda que tudo mudou só porque dois autarcas resolveram colocar nomes de vítimas de violência doméstica nas ruas das suas cidades, é o mesmo que afirmar que o sol se apagou para sempre, só porque vieram algumas horas de sombra.
Também insistir no derrotismo corrente feito lugar comum, de que o mérito não existe e a vulgaridade igualitária abunda, pode significar simplesmente falta de observação, ou tomar aquilo que se vê por aquilo que não se deseja. A nossa História é fértil nos exemplos de heróis ou grandes homens que hoje consideramos celebridades e com nomes nas esquinas das principais cidades, e que no seu tempo foram contraditados até à exaustão, vilipendiados, expulsos da Sociedade, reduzidos à maior das vulgaridades, não raro considerados abaixo de cão, pelo poder ou pelos próprios concidadãos…
O terceiro e último parágrafo do artigo, diz assim:
No Portugal de 2009, o ‘herói’ não é aquele que comete actos ‘heróicos’. Para se ser ‘herói’, basta levar porrada e, de preferência, morrer durante o processo. Se a moda pega, desconfio que até eu darei nome a um beco qualquer: esta pontada nas costas, que eu aguento heroicamente, mata-me dia após dia.
Mas quem pode dizer que aguentar uma vida ao lado de um energúmeno, por amor ou por defesa do bom nome dos filhos, levar porrada, ficar estropiada ou até dar a vida por um acto de nobreza, mesmo que não venha nos livros de História, não é heroísmo puro? Provavelmente até de muito maior dimensão que os Heróis da Rotunda que a ironia popular vulgarizou.
Isso não tem nada que ver com heróis de pontadas nas costas, ou de unha esgaçada ao abrir uma garrafa de cerveja. Mas pode ser tomado com certa indulgência, como pilhéria para preencher algumas linhas obrigatórias num periódico de referência.
Há por aí, nos dias de hoje, mais heróis verdadeiros do que se imagina.
Enfim, num país livre, cada um escreve como sabe e pode.

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