Das arbitragens aos conselhos disciplinares
Antes de mais, quero dizer que os meus fracos conhecimentos de Justiça, de Desporto em geral e de Futebol em particular, provavelmente me levarão a alguns erros. Serão erros normais, porque não sou profissional da escrita, e anormais porque me meti em seara alheia.
A Justiça tradicional, como qualquer instituição humana, não é cem por cento fiável. No entanto, as normas consensuais de moral, a tradição multissecular, a sua organização e a legislação, cada vez mais aperfeiçoada com sabedoria e também com a aprendizagem nos erros cometidos, instituíram na Justiça, a pouco e pouco, mecanismos de verificação, reconsideração, apelação, alteração ou confirmação de sentenças que fizeram dela uma instituição com grande credibilidade por parte da sociedade onde se insere. Quando, nessa mesma Sociedade se torna necessário dirimir questões, castigar ou ilibar cidadãos por crimes, é à Justiça que ela recorre, em última instância.
Com o grande desenvolvimento das actividades desportivas, a partir dos meados do século XIX, e o aperfeiçoamento das competições, foi necessário encontrar juízes desportivos ou árbitros, capazes de decidir, no acto, da verificação, da justeza ou irregularidade de algumas situações, o seu enquadramento ou não, nas regras de jogo pré estabelecidas, o castigo dos infractores ou da sua equipa, etc. A uma primeira escolha de juízes ad hoc entre os simples curiosos, os amantes ou prosélitos do desporto, ou os oportunistas de ocasião, seguiu-se a criação de regulamentos cada vez mais elaborados, mas ainda não foi possível, como alguns desejariam, exigir árbitros profissionalizados.
Em certas modalidades de maior impacto social, como acontece no Futebol, parece-me que a legislação desportiva já devia ter-se encaminhado nesse sentido, porque é uma aberração o futebol ter milhares de funcionários profissionais nas mais diversas áreas, em todos os países onde se pratica, administrações e quadros cada vez mais profissionalizados, treinadores e jogadores profissionais (estes frequentemente a partir da adolescência), normas de funcionamento com abrangência nacional e internacional feitas por profissionais de alta estirpe, e possuir árbitros ou juízes apenas amadores!
Essa aberração é tanto mais evidente quanto o Futebol é hoje, para além da sua vertente desportiva, um negócio que movimenta milhões e milhões de euros em todo o mundo, envolve igualmente milhões de espectadores, os governos e as autoridades de todos os países onde se pratica.
No Futebol, à falta de melhor, recorreu-se, frequentemente a juízes reformados da função pública, mas esses mesmos têm dado um triste espectáculo aos cidadãos, com grande aproveitamento da imprensa desportiva e não só, de tal modo que os sindicatos e outros órgãos da magistratura já emitiram pareceres no sentido de proibir os juízes aposentados de ocuparem cargos directivos ou de consultoria nas federações ou mesmo nos clubes desportivos.
Verdade seja dita também que a Justiça Desportiva tem características muito diversas da vulgar Justiça Civil. Por isso mesmo, a profissionalização dos árbitros deveria ser encarada com a maior das naturalidades e tomada mesmo a sério porque, numa época dominada por tecnologias de ponta tornadas corriqueiras, já lá vai o tempo dos amadorismos. Se antigamente os erros dos árbitros podiam facilmente ser desculpados como meros enganos sem importância devidos a miopia, ou dar origem a discussões infindáveis entre adeptos, hoje, dados os valores em jogo nas competições, e o avanço das técnicas de observação e registo, há mil e um meios de tornar os erros de arbitragem evidentes e indesculpáveis.
Simultaneamente, no Futebol, como em várias outras modalidades desportivas, ganhar ou perder um jogo deixou de ser apenas uma questão de fair play, pode representar o ganho ou perda de milhões, por vezes até a própria salvação ou afundamento irremediável de uma das equipas ou do clube que representa. E assim, neste mundo tecnológico, profissionalizado, baseado no lucro como sobrevivência, mesmo no Desporto, o amadorismo já não faz sentido, nas arbitragens, como os conselhos de arbitragem, conselhos disciplinares, enfim, em todas as vertentes da Justiça Desportiva, sob pena de continuarmos todas as semanas a discutir ridiculamente, como nesta última, se os erros dos árbitros são normais ou anormais...
Outra caricatura extraordinária foi conseguida também pelo árbitro condenado na praça pública e que veio a terreiro com uma anacrónica desculpa sobre a marcação da grande penalidade anormalmente assinalada. Digo anacrónica, porque ninguém viu, senão ele, a bola tocar na mão do jogador e, para mais, todo o lance, duvidoso que pudesse ter sido, ocorreu simplesmente fora da própria grande área!
De qualquer modo, é a primeira vez que ouço falar de erros normais e de erros anormais, como classificou um dirigente leonino. Sempre julguei que os erros eram anormalidades tornadas possíveis, no comportamento humano considerado normal. A anormalidade do erro resulta da normal ausência de infalibilidade de julgamento na espécie humana. Haverá sempre erros. Uns serão maiores, outros menores, resultantes de enganos, de más execuções, de falsas percepções das circunstâncias, de anormais julgamentos, etc.
Provavelmente, no julgamento rápido, sumário, preciso dos lances, num jogo de futebol, os erros só virão a desaparecer com a ajuda instantânea de meios tecnológicos convenientemente adaptados às circunstâncias e às situações passíveis de acontecerem. E entretanto, o único contributo válido para a diminuição dos erros, no Futebol (não digo o seu fim!), só será dado com a profissionalização dos árbitros e de toda a cadeia hierárquica da arbitragem.
Para já, pese embora o que custa a uns o prejuízo da amargura da derrota, e a outros o lucro da alegria da vitória, não há volta a dar-lhe. Mesmo com o erro anormal do árbitro, o Sporting poderia ter ganho o jogo e o Benfica poderia tê-lo perdido. Quem pode garantir que esse famigerado erro anormal foi a causa da vitória do Benfica ou da derrota do Sporting?
Entretanto, vale a pena fazer algumas perguntas pertinentes a este respeito:
Erros anormais, como este, são apenas apanágio dos jogos entre grandes equipas?
A comunicação Social teria dado o mesmo relevo a um erro anormal ocorrido num jogo entre equipas menos cotadas?
Quantos erros anormais acontecem nos jogos da semana, nos campeonatos da Superliga e da Liga de Honra do Futebol Português?
Uma coisa é certa. Mesmo sem recorrer a estatísticas, a frequência de erros de arbitragem com incidência grave no desfecho das partidas de futebol é um facto e cada vez menos desculpável.
A Federação, a Liga de Clubes, a Comissão de Arbitragem e os Órgãos Disciplinares devem, nem que seja por dever de ofício, fazer um esforço meritório para resolver este problema. O tempo dos amadorismos, no Futebol e na maioria dos Desportos de Competição, já acabou, sejam normais ou anormais os erros que tenham acontecido.
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