Comezainas e peditórios
Começarei por dizer que o título e o subtítulo que dei a este pequeno artigo não são contraditórios, como parece. Há muita coisa que parece e não é.
Do que não há dúvida é de que o mundo não seria o mesmo que hoje conhecemos sem as descobertas dos portugueses, nos séculos XV e XVI, chamem-lhes agora descobrimentos, achamentos ou outra patacoada qualquer. O que interessa é que foram os portugueses que deram novos mundos ao mundo e permitiram trazer para a Europa, assaltada pelos turcos e em grande aflição, as especiarias e outras raridades do Oriente, via Cabo da Boa Esperança, ou do Brasil, via Cabo Verde...
Tudo já lá vai. O Império desapareceu e ficou só na imaginação dos estudiosos. Ficaram também os livros de história para recordar aos curiosos destas coisas que os portugueses foram um Grande Povo, sempre à espreita de conquistar, de cristianizar e colonizar, de comercializar tudo o que lhe aparecesse pela frente, dentro do desconhecido meio mundo que começava nas tais léguas a Oeste de Cabo Verde, até às Molucas, a Oriente. E não só.
Foi assim que Lisboa se tornou o centro de comércio da pimenta, do cravinho, da noz moscada, da malagueta, do caril, do colorau e de muitas outros temperos excêntricos orientais que, a pouco e pouco criaram profundas raízes na tradicional alimentação dos portugueses. Mais tarde haveria de acontecer também o mesmo com o bacalhau a que os ingleses chamavam, ainda no século passado, peixe fedorento, mas que agora correm a saborear das tais mil maneiras que só os nossos cozinheiros conhecem e executam com mestria. A necessidade obriga!
E dessa maneira, pela mesma necessidade também, os portugueses tornaram-se grandes inventores de uma cozinha tradicional excelente, com os meios insignificantes que tinham à disposição e que eram desprezados pela maioria dos povos mais evoluídos.
Um dos exemplos mais interessantes é a matança do porco caseiro. Foi sendo adaptada aos tempos, refinada com variadas receitas culinárias e os diversos enchidos que fazem a tradição e o orgulho de cada povoação, e encheram há algum tempo de preocupação uns tantos comentaristas mais formalistas na interpretação das leis da CE, (muito mais que as próprias gentes rurais) perante imaginárias tropelias da ASAE...
Artigos incríveis foram então escritos sobre esses temas, pelos tais comentaristas que, na maior parte das vezes, só conheciam as alheiras de Mirandela falsificadas, as chouriças de Trancoso confeccionadas em Alguidares de Baixo, ou a chanfana de Foz de Arouce que vem descrita no livro de cozinha de algum editor curioso...
Tiro o chapéu à ASAE que eliminou tanta porcaria que havia por aí e que não devia fazer parte da comida tradicional portuguesa, a qual se encontra, felizmente, de perfeita saúde, para desconsolo dos tais profetas das desgraças.
Este ano, por exemplo, já vi, de passagem por zonas rurais, preparativos e sinais de execução da tradicional e cruel matança do porco, porque se escuta à légua! A mesma matança que nem assim, com tanto alarido dos bichos, atraiu as iras da Sociedade Protectora dos Animais e de outros artistas e literatos que simultaneamente atacaram a ASAE com toda a fúria, por serem grandes apreciadores de chouriças, morcelas ou sarrabulho, mas que nunca viram um boi à sua frente. Não os culpo disso.
Um filho meu, de quatro anos de idade que tinha vivido sempre numa grande cidade, no estrangeiro, quando chegou a Portugal, confundiu também uma pele de coelho posta a secar numa cruzeta, com a pele de uma vaca! A sorte dele é que, logo de seguida, eu tive a diligência de mostrar-lhe uma série de animais domésticos e nunca mais voltou a enganar-se. Nem todos têm a mesma sorte.
Mas, voltando às descobertas mais recentes dos portugueses, pondo de lado as fantásticas andanças marítimas dos séculos de grandeza, verificamos que quase todas fazem parte da cozinha tradicional.
É um elogio! Desconfio que não haverá muitos povos com uma riqueza e variedade de preparações culinárias artesanais tão grandes como Portugal, pois cada cantinho se arroga de ter inventado uma receita única, especial, a melhor do mundo, do que quer que seja. O bacalhau, a carne de porco e alguns vegetais são os grandes responsáveis dessa tremenda variedade que os turistas estrangeiros mais curiosos descobrem e com a qual se deliciam, quando nos visitam com tempo.
Vai daí, com a citadina febre de notícias habitual e a patusca ânsia rural de fazer reviver as grandes sagas de antanho, alguns descobridores actuais, de ideias mais avançadas, servindo-se das também tradicionais fofocas da imprensa, resolvem, de vez em quando, explorar um mega evento digno do Guiness. E assim apareceu a Feijoada Monumental da Ponte Vasco da Gama, a Super Caldeirada de Lagoa, O Pão-de-ló Monumental já não me lembro de onde, a Cataplana Gigante de algures, a Sardinhada Industrial de Portimão, a Paelha dali, a Salsicha Quilométrica dacolá, o Bolo-Rei de não sei quantos ovos, etc., etc.
O Porquinho do cortelho, claro, não podia ficar de fora. Uma notícia de um matutino de hoje dá conta de um almoço especial para mil e duzentas pessoas, a realizar domingo, numa freguesia do concelho de Caminha, cuja ementa é um Mega Cozido à Portuguesa. Pode ler-se que «em relação ao megacozido, já foram "mobilizados" cinco porcos, cuja carne entrou na confecção de mais de duas mil chouriças e dezenas de presuntos. Centenas de quilos de carne de vaca e de frango, assim como couves, batatas, cebolas e cenouras, são outros dos ingredientes.»
Em aparte à notícia, apraz-me esclarecer o seu autor que cinco porcos dariam, no máximo, duas dezenas, ou seja, vinte presuntos exactos, e certamente um número bem mais discutível de chouriças. Contudo, nem os presuntos nem as chouriças são comidos «em verde», mas necessitam de vários meses de fumeiro, até ficarem apetecíveis, motivo porque desconfio muito da tal «mobilização»!
De qualquer modo, tanto material para 1200 pessoas apenas, é obra, a menos que sejam de muito alimento...Fartar, vilanagem! (É sem ofensa.).
A notícia não refere, mesmo assim, quantos barris ou garrafões do imprescindível tinto vão acompanhar o farto repasto, nem se umas quantas garrafas de Água das Pedras serão postas à disposição dos esfomeados caminhenses mas, mesmo assim, quantos fregueses não estarão já a salivar abundantemente, enquanto aguardam a chegada da hora...e outros tantos ficam por lá a roer as unhas de inveja!
A notícia diz apenas que este é o sexto Megacozido da Terra, desta vez abrilhantado pela cantora lírica Sofia Escobar, natural de Viana do Castelo, e a sua receita pecuniária será entregue à Comissão de Obras da Recuperação da Igreja Paroquial de Riba d´Âncora.
A crise mundial ainda não deve ter chegado ali. Mas, pensando bem, para comezainas e peditórios a crise nunca chega, no nosso País.
Viva Portugal dos grandes eventos noticiosos e das invenções tradicionais espectaculares!
Ao diabo as multas da ASAE e igualmente os seus detractores derrotistas!
Tristezas não pagam dívidas! E como é por uma boa causa...
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