Nem sempre os segundos contam
Não há dúvida de que este foi um ano de excessos, com ataques terroristas em locais insuspeitados, demissões de governos não previsíveis, crise económica e financeira que já levou bancos à falência e países à beira da banca rota, milhões de pessoas a morrer de fome, desemprego a tentar a escalada e muitas outras coisas que dariam para encher várias páginas.
O sentimento geral de frustração e de insegurança alia-se a um recrudescimento de um certo radicalismo em todas as circunstâncias, a que não é estranha a globalização imposta pelas tecnologias da comunicação em que vivemos.
Alguém me dizia, há tempos, que eu culpava a imprensa de muitos sucessos, quando ela era apenas o veículo, a cara dos acontecimentos...Mas eu insisto.
A imprensa, por mais neutra que possa parecer quanto aos eventos que relata ou comenta, é sempre intervencionista. Se não fosse ela, grandes faixas da sociedade, a nível mundial seriam ignorantes do que acontece e estariam proibidas de intervir, ou de receber simplesmente os benefícios e as desgraças daí resultantes.
Quando, há muitos anos, um eminente cientista e filósofo disse mais ou menos, para escândalo de muito boa gente, que o bater das asas de uma borboleta no Arizona originaria uma catástrofe na Cochinchina, ninguém, até os mais avançados em conjecturas, poderia prever que pormenores muito mais insignificantes viriam hoje a ser ainda mais determinantes, na vida de cada um. E, à medida que o tempo passa, mais e mais se acentua a interdependência das populações, neste universo em que o equilíbrio que gera o bom senso, e a liberdade se tornam cada vez mais difíceis, exigindo de cada um mais regras, mais inteligência e cooperação com os semelhantes, mais abdicação daquilo que até há cinquenta anos julgávamos intangível, em troca de novas tecnologias, novos vícios, novas necessidades, novas comodidades e novas misérias...
No meio de tantas conjecturas, do acelerar constante dos novos conhecimentos, sentimos, por vezes que a Humanidade se desumaniza, se transforma em números, em estatísticas,
Por exemplo, uma notícia, veiculada na imprensa de hoje, dá conta de que o ano de 2008 vai ser, exactamente, maior que os antecedentes, porque a Terra se atrasou, no seu movimento de rotação. E assim, «na passagem de ano, o último minuto de 2008 contará com 61 segundos!
Não se trata de um bónus, mas de uma necessidade de acertar o Relógio do Homem com o Relógio da Terra.»
“Nós usamos, ao nível internacional, uma escala de tempo atómico e essa escala é muito mais precisa do que a Terra. Para que não existam grandes diferenças entre a escala de tempo atómico e a rotação da Terra é necessário haver pequenos acertos”.
Tão simples como isso, tão complicado como a notícia faz crer, ou vice-versa, tudo dependo do sábio ou do ignorante, do literato culto ou do alfabetizado iliterato que passam os olhos pela notícia...
Hoje é dia de Natal do ano de todos os excessos, até de um segundo a mais antes do fim.
Uns dias atrás, os guerrilheiros do Hamas lançaram mísseis provocatórios sobre território israelita e, nesta madrugada de oração e respeito para islamitas e cristãos, a aviação judaica mandou-lhes uns petardos de retaliação que causaram vítimas, enquanto o Papa e M. Abbas, em plena zona sagrada de Jerusalém, davam honras ao Senhor, como se pregassem no deserto...
Porque, afinal, quem dará importância a estas palavras de paz proferidas para multidões?
A imprensa globalizadora e hipócrita fá-las ressoar, de uma ponta à outra do planeta, mas como se fizessem parte de um gigantesco anúncio comercial ante o qual todas as boas intenções e todas as celebrações moral e secularmente impostas são desvalorizadas em luzinhas e balões, em festejos, em ágapes lautos e escandalosos, em trocas de presentes sem significado, enfim, num simples e geral encolher de ombros...
Talvez esta barafunda artificial e a sua furiosa publicação comercial sejam, sem dar-nos conta, os maiores excessos deste ano, maiores que todas as crises económicas e financeiras que se adivinham por aí. Também elas, como todas as outras, não terão solução à vista sem o regresso da paz às consciências.
E a paz armada, que a humanidade sempre desejou aplicar, nunca foi nem será remédio definitivo, como todos os radicalismos, como todos os excessos...
Então por que será que o Homem, sabendo isso, se obstina, teimosamente, na aplicação das soluções erradas que vem fazendo, desde o exacto momento da sua criação?
Ou alguém pensa por aí agora que, com este excesso de um segundo no tempo de rotação da Terra, de tantos em tantos anos, virá a regeneração da Humanidade?
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