terça-feira, 26 de fevereiro de 2008

VINHAS, VINHOS E TASCAS

Crónica de uma certa evolução alcoólica

No princípio do Verão passado tive a ideia brilhante de dar uma passeata a Barca de Alva, atravessar o Douro e percorrer vários quilómetros de curvas e contracurvas por entre as vinhas plantadas nos socalcos que bordejam o rio, a verdadeira origem do tão afamado Vinho do Porto. Há muito tempo que não fazia semelhante viagem e pude apreciar de novo a paisagem magnífica de cores únicas, impossíveis de descrever, de uma beleza incomparável.

Deu-me para pensar, durante o percurso, como teria sido possível a construção daqueles muros, daqueles patamares imensos com a plantação intensiva e exclusiva daquelas vinhas a perder de vista, tudo sem máquinas, só a pulso e com o esforço de muitos braços, num terreno agreste, de uma inclinação complicativa que apenas terminava no rio profundo, perigoso, de corrente violenta e rápida.

Lembrei-me da primeira vez que fizera tal trajecto e da impressão fantástica que tivera, sobretudo porque era Outono e as folhagens apresentavam aquela mistura indefinida de tons entre o verde, o ocre, o vermelhão, o castanho. E no meio, salpicando a paisagem, as casinhas brancas, as adegas…

A certa altura, cansado da perigosa e demorada viagem, parei, já não sei onde, para descansar, sentei-me por momentos numa pequena esplanada, a tomar um café e a apreciar calmamente o panorama que se divisava dali.

E então os meus pensamentos levaram-me até uns cinquenta anos atrás e ocorreram-me algumas descrições fabulosas que tinha lido, de escritores do romantismo do século XIX sobre as Terras, as gentes, os seus usos e costumes, a sua difícil forma de vida no meio daquela beleza, provavelmente a única coisa susceptível de lhe trazer alguma felicidade…

As coisas evoluíram bastante, desde esses tempos do carro de bois e do cesto de vime ao ombro, vezes sem conta, montes acima.

Sempre desejei ler tudo o que me aparecia sobre esta região e o seu principal produto - o vinho. Mas mesmo há cinquenta anos, parecia-me bem difícil encontrar livros sobre vinhos, mesmo percorrendo boa parte das livrarias de referência. As edições que se encontravam eram escritas por alguém de certa elite social ou a ela ligado, eram limitadas, feitas em papel couché, primorosamente encadernadas e pouco acessíveis à maioria das bolsas.

Continuávamos ainda, nessa altura, na época das vinhas tradicionais tão idolatradas, com as cepas cuidadas sempre da mesma forma, utilizando técnica que passava de pais para filhos, desde centenas de anos atrás. Também era a época das tascas a cada esquina, aos milhares por esse país fora, quase tantas como os bêbados que ziguezagueavam nas estradas, ou caíam roncando com esforço até cair de mortos nas valetas.

O alcoolismo tornara-se uma doença comum, uma verdadeira epidemia sufragada pelas sopas de cavalo cansado a que nem as crianças de tenra idade escapavam, ao pequeno-almoço, antes de partir para a escola, ou para os trabalhos do campo. Adaptararam-se hospitais para tratar desta lacra social e a utilização ou compra de vinho foi mesmo proibida nos estabelecimentos de venda ao público, a menores de 16 anos.

Mas foi preciso entrarmos na CE para se estabelecerem regras rígidas na preparação de áreas demarcadas para o cultivo da vinha, no fabrico do vinho, na sua armazenagem, no seu transporte, na sua comercialização. E hoje, ao desaparecimento das tascas e das zurrapas, sobrepôs-se o aparecimento de bares e de marcas de qualidade declarada, registada e apreciada!

De repente, apareceram dezenas de livros sobre vinhos, de todas as formas e feitios, nas livrarias ou nos supermercados, escritos pelas mais diversas personagens, promovidos pelas mais diversas marcas e empresas do ramo, ou simples exploradores turísticos.

Um grande progresso teve lugar, portanto, nestes últimos trinta anos, quanto ao cultivo da vinha e à exploração vitivinícola.

E ainda bem.

No entanto, nesta época em que vivemos, e em contraposição, se os bêbados desapareceram das estradas onde circulavam a pé porque os carros eram raros e o nível de vida era baixo, parece que se transferiram para o interior dos milhares de automóveis que agora circulam nelas.

Que tal evolução!

Ora, se antigamente acontecia os alcoólicos virem a falecer nas bermas, agora sucede que, não só morrem eles próprios ao volante, como matam quem os acompanha ou quem apanham pela frente, tanto faz que seja na berma, como no alcatrão…

Paguei o café, enchi-me de coragem e meti-me no carro, de regresso a casa, trezentos e tal quilómetros adiante. Felizmente não encontrei bêbados no caminho e cheguei sem novidade.

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