domingo, 17 de fevereiro de 2008

SELVAJARIAS NUM PAÍS CIVILIZADO

Crónica de pessoas e animais

Está a cair uma chuva miudinha, a conhecida chuva molha tolos e optei por ficar em casa, sentado ao computador, a catrapiscar notícias on line ou entretido com outros passatempos úteis. A certa altura, a propósito não sei de quê, lembrei-me de uns quantos casos há dias surgidos na Comunicação Social, e meti-me a escrever algumas linhas.

Um desses relatos mostrava a tradição de uma aldeia em que a população, pelo Carnaval, caçava um gato, metia-o numa panela de barro pendurada por uma corda no cimo de um poste, na base do qual era ateada uma fogueira, para gáudio da populaça. Quando as chamas cortavam a corda de amarração, o pote caía no chão, partia-se em mil bocados e o animal saia, se estava vivo e ainda tinha forças, fugia pelo meio da fogueira, aos saltos, perseguido pela rapaziada até ser morto à paulada, como suprema vitória.

Não sei se essa tradição vem da Idade Média ou coisa que o valha, mas seria interessante descobrir como foi possível manter-se até aos nossos dias. Em pleno século XXI, selvajarias destas são inadmissíveis, num país que se diz civilizado. Mas permanecem, como divertimento das gentes que, provavelmente, outros não têm. Por outro lado, também não sei se na Idade Média ou antes, essas populações não comeriam gatos e cães, como ainda fazem os chineses, tal como hoje em Portugal e em toda a Europa se comem coelhos, porcos, ovelhas, vacas e tantos outros animais, coisa que nada nos repugna.

Mas a forma de utilizar gatos domésticos para uma diversão selvagem, não nos dignifica nada!

Infelizmente, não fica o povo português só por aqui.

Quando era miúdo e passava férias na aldeia, havia uma festa religiosa a 15 de Agosto, em honra de N.ª S.ª da Guia., com missa cantada, procissão, foguetório até rebentar os tímpanos e, de tarde, após um almoço de quinze ou vinte pratos e largas canecas de vinho, uma banda de música tocava, num coreto, em volta do qual se realizavam divertimentos vários. Entre outras coisas, havia um leilão de ofertas para custear algumas despesas. Uma das animações promovidas pela comissão das festas, era a morte do galo.

Um galaroz avantajado, ofertado por algum devoto, era enterrado vivo, deixando-lhe apenas a cabeça de fora. Uma linha recta de uns dez metros de comprimento, era traçada no chão e apresentavam-se então os concorrentes à posse do galo, quase todos já bem bebidos, aos quais era colocada uma venda e dado um grosso cacete. O tirocinante tinha de calcular, às cegas, a distância e a posição da cabeça do animal, avançar direitinho, adivinhando o risco traçado e desferir o golpe fatídico na altura própria, o que lhe dava a sua posse. Se uns concorrentes eram desastrados, outros exibiam uma razoável pontaria e alguns chegavam mesmo a acertar no bico do animal. Até que lá vinha um mais sortudo que escaqueirava a cabeça do galo com o cacete, bebia mais um copázio de carrascão como prémio e entregava o galo à mulher para depenar e cozinhar para a pândega da noite.

Nas nossas aldeias, contudo, há muitas mais selvajarias encaradas com naturalidade e ai daquele autarca que tente opor-se a elas, mesmo a coberto de leis mais recentes. Não tenho a pretensão de descrevê-las. No entanto, não poso esquecer uma, a mais selvagem, para mim, a da matança do porco.

O suíno foi sempre uma tradicional forma de alimento das populações rurais e da confecção de enchidos, a maneira de conservar os alimentos nas épocas em que não havia frigoríficos e mesmo o sal era um luxo, nas zonas de interior. Ainda hoje a carne de porco é indispensável à alimentação do povo português e isso não está em causa, mas a forma selvática utilizada para matar o animal, amarrado pelas patas, de focinho tapado para abafar os gritos estridentes do desgraçado, seguro pelas mãos dos esbirros a uma banca, esfaqueado finalmente nas carótidas ou na aorta, condenado a esvair-se lentamente em sangue, colhido pelas mulheres num alguidar de barro e mexido com uma colher de pau para não coagular, com destino ao saboroso enchido.

Tendo assistido em criança, por duas ou três vezes a esta barbárie nunca pude esquecer as risadas dos matadores, animados pelo cálice prévio do mata-bicho nas manhãs frias de Inverno, antes da cena, nem fui jamais capaz de comer as morcelas, nem as afamadas papas de sarrabulho…

Claro que os autarcas nem abrem a boca, com medo de perderem os votos.

É também muito interessante ver os inúmeros defensores dos animais muito caladinhos, quando se fala da matança do porco, eles que tanto alarido fazem quando algum cão é açaimado ou metido num canil, em vez de andar por aí à solta!

Há dias, mais um desses cãezinhos ferozes de estimação que são utilizados como guardas, sem as devidas precauções, atacou e colocou às portas da morte uma criança de tenra idade que se encontra num hospital, às portas da morte e que, se sobreviver, vai ficar marcada para toda a vida. Como de costume, os protectores dos animais vieram logo defender o cão, certamente provocado, colocado perante um contexto para o qual não teria sido ensinado, e outras alarvidades.

Anacronismos da nossa sociedade.

Já ninguém se importa grandemente com as criancinhas que aparecem violentadas, mortas, abandonadas, ou bebés metidos em depósitos de lixo. As manifestações públicas vão todas para coisas mais superficiais e sem importância, ou para captar umas quantas regalias sociais que os governos são sempre avaros em conceder.

A inversão de valores morais, nesta época de civilização avançada em que nos prezamos de viver, é o prato forte que somos obrigados a apreciar nas notícias de todos os dias, calmamente sentados, ante um jornal e uma chávena de café.

Já descarreguei a minha indignação por hoje.

Continua a chover. É quase noite.

Os postos de rádio e de televisão, como de costume aos domingos, a esta hora, destilam futebol e outras banalidades sem interesse.

Fico por aqui

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