Os espinhos que permanecem
Lá anda o Museu Salazar às voltas, entre os cidadãos da Terra, a polícia e os oposicionistas, apoiados os primeiros pela Câmara Municipal, os segundos pelas autoridades de segurança e os últimos pelos mentores mais radicais de algumas correntes políticas.
Pessoalmente, antecipo, não me agrada a instalação do Museu, mas ela deverá ser interpretada e comentada para além dos gostos pessoais.
O problema é muito mais complicado, de tão simples que parece ser, no fundo, e por isso já foi alvo de uma petição à Assembleia da República, tendo sido debatido apaixonadamente por todas as bancadas, com a Direita a apoiar os partidários da instalação do Museu e a Esquerda a rejeitá-la. No final, tudo ficou em águas de bacalhau, porque não houve qualquer votação a esse respeito. O problema vai persistir.
Ora, independentemente dos prós e dos contras que o Museu Salazar possa ainda mobilizar, uma coisa é certa: ele já morreu há cerca de quarenta anos e o seu regime acabou, vai para trinta e cinco! Muito da História desse tempo está ainda por escrever, e ela tornará claro o que de bom e de mau Salazar fez no país, ao longo de várias dezenas de anos. O Museu servirá para manter vivo, no futuro (e na memória cada vez mais débil dos portugueses), um pedaço dessa História, com os seus parágrafos negativos e positivos permitindo, quando já poucos se lembrarem de uma época de limitação das liberdades individuais, o que é que fazia endeusar um homem tranquilo e certamente superior, elevando-o acima dos seus defeitos, o maior dos quais foi a manutenção, pela força policial, da obediência e domínio do país, durante um período tão longo.
Essa História faz-se de grandes feitos, mas também de grandes misérias e, sobretudo, de pequenos nadas que comandam tudo na sombra, dos quais muitas vezes só mais tarde nos apercebemos. O Museu contribuiria, sem dúvida, para tornar visíveis alguns dos aspectos talvez menos conhecidos do público actual, do carácter, da personalidade de Salazar.
As gentes do concelho de Santa Comba Dão teimam em perpetuar a sua memória, como o mais ilustre filho da Terra, enquanto outras persistem em apagá-la. Entre estes, alguns, eventualmente, pensam que os demais, de sentido político contrário, desejariam ou poderiam aproveitar-se, à sua sombra, da ideologia política salazarista, para ressuscitar um regime que o 25 de Abril destronou, o que é uma excessiva aberração democrática e, mais que isso, um sinal de medo e descrença na vitalidade da democracia que nos governa. Pretendem usar, para evitá-lo, os processos da ditadura que Salazar tão bem encarnou.
Numa outra óptica, a exaltação dos conterrâneos falecidos, mesmo mal amados, sempre foi considerado uma virtude, sobretudo nas zonas rurais, e nunca fez mal a ninguém. Mas, para outros, mais urbanizados, até umas simples flores piedosamente colocadas numa campa, por familiares ou amigos, poderão congeminar um santuário, uma intenção oculta, uma tentativa de perpetuação de um regime banido, senão mesmo o começo de uma revolução, e o Museu transformar-se-ia no agente panfletário dum atentado, num espinho cravado no politicamente correcto da sua visão sócio-política do país.
Os cidadãos de Santa Comba Dão gostam, ainda assim, do seu Salazar, muito embora já tenha passado a época dos mitos e dos caseiros heróis semideuses?
Deixá-los lá, até que se fartem.
Mas não lhes demos razões para maior exaltação, com slogans em desuso ou com proibições mal fundamentadas, criadoras de novos mitos.
Uma notícia de hoje, dá conta de que uma representação de Hitler, no Museu de Cera de M.me Tousseau, em Berlim, onde figuram mais de 70 representações de personalidades mundialmente conhecidas, como A. Einstein, Bento XVI, etc., tinha sido decapitada por um desses guardas da orientação política global que não admite posição contrária à sua. Tal como próprio Hitler pensava e punha em prática, no seu tempo...
Não podem ser ocultados, como os ditadores tentaram fazer queimando livros e pessoas, os anos da História que não nos agradam. Devem ser expostos, juntamente com os energúmenos da época, para que a Humanidade deles tire o devido exemplo, veja o que realmente se esconde atrás da aparente bonomia ou eficácia dessas personagens. Para que se repita diariamente o julgamento necessário e justo, mantendo o esquema de prevenção desejável, afim de que os sistemas que implementaram não voltem nunca a ter lugar de relevo na sociedade.
Na Alemanha, o Museu de M.me Tousseau não se transformou em santuário, os alemães prenderam pouco depois o autor do atentado. Com a larga experiência que têm destas coisas, acharam, há muito, que já era tempo de abandonar de vez radicalismos (ou vinganças), de qualquer cor.
Será que, em Portugal, após trinta e cinco anos de democracia, ainda não aprendemos?