quinta-feira, 1 de maio de 2008

SELVAGENS DOS TEMPOS MODERNOS

Crónica de uma Áustria desconhecida

Quando, há anos, passei pela Áustria, em passeio, fiquei maravilhado com as paisagens indescritíveis, as gentes, a cultura, a beleza, a riqueza que ressumavam de qualquer lado, e deixavam os turistas e a mim próprio, deslumbrados.

Durante muitos anos, tive a Áustria como um modelo paradigmático de País civilizado. Mas não há bela sem senão, como diz o sábio ditado popular lusitano.

A notícia que invade as televisões de todo o mundo, a todas as horas, até não se sabe quando, causa estupefacção e faz vómitos às gentes simples do nosso país onde, infelizmente, também há crimes hediondos, mas não há memória de uma tragédia deste calibre, fruto de refinada determinação a longo prazo.

Os selvagens que nos mostravam na infância eram valentes, repentinos, não se mostravam capazes de cenas tão sofisticadas, na vida real, muito menos nas histórias de quadradinhos do Pim-Pam-Pum, do Mosquito ou do Pirilau.

E quem se atreveria a supor que a super civilizada Áustria seria a pátria de uma selvajaria como esta recentemente descoberta e outra do mesmo tipo posta a nu ainda há bem pouco tempo?

O que mais impressiona, nestes dois casos, é o facto de serem praticados em meios urbanos, por pessoas descendentes de pais normais, com instrução e educação média superior, com condições de vida razoáveis, habitando zonas normais, rodeados de vizinhos normais, de famílias normais.

Num dos casos, um jovem manteve sequestrada num cubículo, durante dez anos, uma criança que «adorava». No caso mais grave, o criminoso que fazia uma vida aparentemente normal e era casado com uma mulher normal, teve artes de esconder dela e de toda a vizinhança e enclausurar uma filha de onze anos, numa cave 45metros quadrados de superfície e 1,7metros de pé direito disfarçada na própria casa, durante vinte e quatro anos (!), violá-la e fazer-lhe sete filhos -um dos quais morto por falta de cuidados e queimado ali mesmo, o mais velho agora com dezanove anos -todos sem nunca verem a luz do sol, sem conhecerem mais ninguém… num cenário que toca as raias do imaginário, de uma profunda irrealidade, difícil de descrever…e até de acreditar.

Ocorre perguntar por quê, tamanha desumanidade? …

E não se vislumbra qualquer resposta.

Provavelmente, dirão alguns, o abandono da religião e dos princípios da moral cristã serão os responsáveis.

Outros atribuirão os casos a distúrbios mentais dos executantes.

Outros ainda, a dificuldades e condicionantes várias da vida dos criminosos.

Enfim, um sem número de apreciações e de ideias poderão ser feitas ou emitidas, mas ficaremos sempre na mesma ignorância inicial, o que nos remete, infalivelmente, para o desconhecimento das medidas a tomar para evitar, no futuro, situações semelhantes.

E nós, que estamos tranquilamente em casa a ver ou ler estas notícias chocantes, estas aberrações monstruosas, mais não sabemos, na nossa estupefacção, no nosso medo, na nossa cobardia e na nossa ignorância, do que virar a cara para o lado, horrorizados e dizer num vómito:

-Selvagens! Não quero ver mais isso!...

Mas se aqueles que, por atraso da nossa civilização em chegar até eles, fossem confrontados com estas cenas, sentir-se-iam ofendidos na sua moral primitiva, na sua humanidade pré histórica.

Na realidade, esses criminosos que a frio planearam e executaram tais crueldades em pleno século XXI, nem sequer imaginadas por bárbaros ou selvagens de milhares de anos A.C., não merecem que os tratemos como homens. Os animais tratam as crias com mais carinho.

E no entanto, há sessenta e tal anos, foram os habitantes germânicos daquelas paisagens maravilhosas, orgulhosos da sua cultura, mas subservientes ao mandado de um louco austríaco que planearam tranquilamente, a frio, o holocausto de dez milhões de judeus…

Apesar da distância dos factos, é difícil não associá-los, não pela dimensão dos actos em si, mas pela frieza refinada do seu planeamento e execução, muito menos passar uma esponja por cima deles.

É com muita tristeza que recordo as gentes delicadas e as belas fotos que tirei há anos nesse maravilhoso país de que só conservei boas recordações.

Infelizmente o mundo é assim, tem destas contradições.

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