terça-feira, 13 de maio de 2008

COISAS QUE ACONTECEM

Crónica de polícia, madame e cachorrinho

Ontem escorreguei na caca de um cão despejada no passeio e por pouco não me estendi ao comprido. Depois de um calafrio que me percorreu a espinha e me pôs os cabelos em pé, não tive outro remédio senão tratar de disfarçar a porcaria que ficou aderente à sola do sapato, roçando-o, desesperadamente, na borda do lancil.

Depois, por breves momentos, fiquei ali, indeciso, sem saber o que fazer. O pivete já me ia chegando às narinas e começava a sentir vergonha, sempre que passava alguém perto de mim. Estava decidido a regressar a casa, ali perto, mas inesperadamente dei comigo a fixar os olhos num polícia que vinha subindo, pachorrentamente, na minha direcção, a rua que ficava em frente, seguindo uma madame que levava um cãozinho pela trela. Uma sensação estranha de ódio e vingança se apoderou de mim. Apeteceu-me dar um bofetão na madame, um pontapé no cachorro e fazer queixa ao comissário da esquadra, do ineficiente polícia de giro.

Já um pouco mais calmo, encostei-me ao gradeamento do jardim e pus-me a observar o trio que se aproximava, enquanto dois transeuntes passavam à minha frente, faziam um desvio para se afastarem da pasta fedorenta que permanecia ao lado, e olhavam para mim de soslaio, pensando que estaria aquele paspalhão ali a fazer…

Logo, meio minuto passado, o animalzinho alçou a perna e aliviou a bexiga de encontro a uma árvore que se encontrava ali mesmo, no seu caminho, feito o que, completou a operação com a rosca do costume, na borda do passeio, ante o contentamento da dona e a passividade do guarda. Lá ficou a rosca à espera do próximo incauto como eu, dois ou três minutos antes antes…

Uma vez mais me senti irritado com o trio e comigo mesmo, mas logo condoído.

Coitado do animal, pensei. Não vive em liberdade e, ainda por cima, tem de fazer as necessidades sem privacidade nenhuma, agarrado por uma trela às mãos de uma fulana preguiçosa e negligente que não o deixa por pé em ramo verde, excepto naquela ocasião em que lhe era permitida uma réstia de liberdade…Havia que aproveitá-la!

Coitada da madame, sem outra distracção que levar o caniche a desaguar, enquanto o amásio não chegava e o telefone se mantinha silencioso…

Coitado do agente da autoridade, tantas vezes vilipendiado pela população, enganado pelos gatunos de serviço, atacado pelos valdevinos matreiros e, sobretudo mal pago…

Coitados todos eles. E eu que me trame!

Mas que mais se poderia esperar destes três?

A culpa até fora minha, que não olhara para o chão. Os portugueses são uns cabeças no ar…

A maioria dos meus compatriotas atira-se ao governo, pela falta de polícias nas ruas, causa de andar à solta toda esta escumalha humana que nos insulta, nos ataca, nos rouba, nos atropela e se ri de nós, ainda por cima! E desta canzoada que nos passa rasteiras a qualquer canto e infecta os pneus das viaturas!

Mas eu não estou de acordo.

Este País, com letra grande, que tem sobrevivido ao longo de quase nove séculos, contra ventos e marés, anda submerso numa onda de negativismo, fruto de uma gigantesca falta de civismo, na época de ouro da tecnologia e da educação que tardam em nos encher de esperança. Infelizmente, alguns comentaristas fazem também coro com os descontentes e os politiqueiros de serviço, exigindo mais polícias nas ruas, nas repartições, nas bombas de gasolina, nos campos de futebol, nas escolas, nos mercados, nas discotecas, nos museus, nas praias, nos comboios, nos montes, por aí fora…

Penso que não têm razão. Julgo que algo está errado.

Portugal é dos países onde há menos criminalidade, segundo as últimas estatísticas da CE, mas onde, aberrantemente, existe a maior percentagem de polícias, de advogados, de juízes e de presos, relativamente à população. E cerca de trinta por cento dos presos são preventivos!

O que quer dizer que a educação, o civismo e a eficiência no trabalho, dos portugueses, devem estar na fossa, como dizem os brasileiros. E, sendo assim, como concluiria La Palisse, não vale a pena multiplicar o número de polícias para aumentar a nossa segurança, se nós todos não fizermos por ela, aumentando o nosso índice de educação, o nosso civismo e a eficácia do nosso trabalho, o que se afigura uma tarefa bem difícil.

Ora, como tal não se vislumbra, dizia eu há tempos a um amigo, meio a sério, meio a brincar, que em Portugal só se evitariam os assaltos, os roubos, as corrupções e tantas porcarias que a imprensa se dedica a expor ao sol, em seu benefício, se fosse colocado um polícia atrás de cada cidadão…Mas então, seria mister colocar um GNR atrás de cada polícia, um PJ atrás de cada GNR, um magistrado atrás de cada PJ, um fiscal das finanças atrás de cada autoridade e assim por diante, transformando simultaneamente o Alentejo num grande campo de concentração e correcção…

Não me lembrei dos cachorros que andam por aí alçando a perna em cada árvore, em cada roda de automóvel estacionado, em cada esquina, encerando os lancis dos passeios de pomada castanha, embora presos pela trela das madames e cavalheiros sempre muito interessados na protecção de animais de estimação que guardam ciosa e cruelmente nas casotas das varandas ou das marquises das cozinhas.

Assim, por mais que gritem, por mais que protestem, não há polícia que chegue!

Esfreguei, furiosamente o sapato na borda do passeio, disfarcei o mais que pude, dirigi-me ao edifício onde moro, por sinal perto do local do acidente, como disse, abri a porta e lá fui ao pé coxinho até à casa de banho, dizendo de passagem à minha mulher, desconfiada:

-Tem calma, que felizmente não parti nenhuma perna!

-Uffff! Não digas mais nada, que já percebi!...

Depois de moroso trabalho de limpeza e calçados os chinelos de emergência, cheguei à janela ainda a tempo de ver a madame a continuar o seu passeio com o cãozinho já aliviado, e o polícia fazendo a guarda, caminhando vagarosamente de um lado para o outro de olhos postos no chão, por causa das coisas, que o seguro morreu de velho...

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