sexta-feira, 16 de maio de 2008

SÓCRATES E O TABACO

Crónica de um português suave…

Há quatro dias que a nossa classe jornalística, sempre tão culta nas reuniões, moralista nas suas páginas e acutilante na censura dos erros do próximo, vem ocupando o seu tempo com o episódio de Sócrates a fumar, descuidadamente, no avião da TAP, a caminho da Venezuela.

Culpado!

Não conheço a lei, mas provavelmente até será.

E, se fumou, é lá com ele. Se alguns ministros ou jornalistas que o acompanhavam fumaram também, é lá com eles! Se foram ou não autorizados pelo comandante do avião, a maior autoridade a bordo, é lá com eles e com o comandante.

Muitas outras investigações podiam ter sido feitas pelos inquisidores a bordo, como por exemplo, se a cortina entre classes estava bem corrida, se alguém foi fumar à socapa para a casa de banho, se os restantes passageiros se importaram com o facto, em que condições de fumo o avião foi fretado, se o comandante se sentiu indisposto ou foi coagido, se alguém teve ataques de tosse, a bordo, se algum dos jornalistas que iam à borla, convidados, tinham feito ou não juramento de solidariedade com os restantes passageiros borlistas ou com os membros do governo, se algum procurador delegado eventualmente presente, leu a lei e os direitos aos prevaricadores e colocou os seus telemóveis sobre escuta, se os estofos das cadeiras não saíram queimados ou chamuscados da cena, enfim, se a gasolina dos isqueiros não inquinou os pratos de comida rápida…se o cheiro a Português Suave conseguiu ou não impregnar os cintos, as bolsas, os depósitos de bagagem, os equipamentos da cabina…Na melhor das hipóteses, a marca de cigarros nem era essa. Essa era apenas a marca dos viajantes no avião.

Estaria aqui até amanhã a citar pontos fracos na investigação jornalística a bordo, publicada e glosada durante estes quatro dias…a que faltou a acusação dos infractores à ASAE, à PSP, se necessário à PJ, para que os interrogassem e multassem sem dó nem piedade, à sua chegada ao Aeroporto de Lisboa, e o mais que adiante se verá.

Outra falha gigante dos senhores jornalistas investigadores foi terem passado como vinha vindimada por cima de todas as autoridades competentes, publicando antecipadamente a notícia, citando leis, tirando conclusões, atribuindo castigos e coimas, rogando pragas ou citando provérbios e princípios de moral cristã meio esquecidos e avisando entretanto os partidos políticos, especialmente os da oposição que, neste caso, rendem mais...

Já todo o mundo sabe que a imprensa se borrifa nas autoridades competentes, que investiga por sua conta e risco, coloca na praça pública os segredos da Justiça obtidos de fontes seguras inatacáveis e bem ocultas…e faz julgamentos infalíveis na praça pública, acima de toda a controvérsia, acima dos próprios tribunais. Mas ninguém teria imaginado que um avião de fumadores importantes se transformasse num caso de estudo, de julgamento com linchamento do Primeiro-Ministro, por ter fumado uma porcaria qualquer que mata e produz cancro, a caminho da Venezuela.

No melhor pano cai a nódoa! O homem fumou, por isso tem que pagar…e a dobrar, porque, como chefe de governo, deve dar o exemplo aos portugueses, suaves ou não. Andam já os deputados da Oposição a afiar as facas para a próxima reunião da Assembleia em que Sócrates será chamado a prestar contas pela infracção à lei, pelo escandaloso acto cometido, pelo mau exemplo dado aos cidadãos…

Páginas e páginas de jornais, horas de rádio-emissores e de estações de TV gastas a rodos, tudo por culpa do Primeiro-Ministro e dos seus cigarros. É obra!

Mas o caso não fica por aqui. Entrevistadores foram ter com ele aos poços petrolíferos, que o caso não era para menos, tentando encostá-lo à parede, fazer com que confessasse a sua culpa, desse espectáculo à população ávida de sensações fortes…E foi o que aconteceu, inesperadamente para os jornalistas e comentaristas de serviço.

Sócrates lá confessou abertamente que se sentia culpado…que lamentava…que pedia perdão… que já não voltava a fazer…que deixaria de fumar definitivamente, para exemplo e tranquilidade de todo o mundo. E pensou para com ele que o assunto estava encerrado.

Ora a coisa não é assim tão simples de resolver, como lhe pareceu. Ai dele se algum jornalista sombra o descobre, por acaso, a dar umas passas ao virar da esquina, ou atrás de alguma cortina improvisada!

Também o Presidente da República teve que se explicar porque havia fumadores nos aviões fretados pela presidência, embora ele próprio não seja fumador…

Como sempre, deve ter havido, nestes dias, muitas outras notícias de impacto para transmitir aos cidadãos, mas nenhuma delas com o impacto destas!

Por isso não resisti a passar os olhos pelos comentários surgidos na net, às notícias referidas, e encontrei alguns dignos de serem encaixilhados…Aqui vai um, a título de exemplo:

«Eu, se fosse o Sócrates, tinhas-os mandado a um certo sítio. E se fosse o Presidente Cavaco dizia para não me incomodarem com este assunto de lana caprina em vez de dar respostas cínicas. É de facto uma vergonha que se ande há 3 dias a discutir uma coisa que nada significa, em vez de discutir os beneficios-maleficios desta viagem ministerial-empresarial à Venezuela. Melhor fariam os órgãos de comunicação social em dar aos portugueses um panorama desta visita: negócios fechados, beneficios para o País, vida da Comunidade Portuguesa na Venezuela, remessas, ou não, desses nossos compatriotas, seus problemas, preocupações e necessidades, entrevistas com os seus líderes e empresários mais representativos, entrevistas com empresários da comitiva e quais os negócios e expectativa, etc., etc., etc.: isso sim, seria excelente trabalho …»

E ainda outro, de ironia fina:

«Isto é de uma extraordinária importância. Sublime!»

Maldito tabaco!

Coitado do Sócrates! Tem azar! É o alvo preferido dos que tudo coscuvilham, tudo sabem, tudo criticam em nome da liberdade de expressão com que espremem os outros, e não produzem sumo nenhum…

Mas este não é caso único. Na antiga Atenas, Sócrates, um homem bom e sábio, não conseguiu livrar-se de ser injustamente julgado, condenado pelos sicários invejosos do seu tempo, e executado por envenenamento com cicuta.

Este Primeiro-Ministro, homónimo do grande filósofo grego e sem chegar sequer aos seus calcanhares, não se livrará também de que lhe sacudam o pó… ou de ser atropelado amanhã, por um recruta!

Tal como ouvi contar acerca de um cábula, a um professor de História, há uns largos anos atrás… ainda a Comunicação Social era vítima da censura e não tinha a força que tem hoje. Nem a imaginação. Nem os meios. Nem o vagar.

Coisas…

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