sexta-feira, 4 de abril de 2008

AS PEDRINHAS DA CALÇADA

Até choram! Nos meus tempos de menino, havia um fado que glosava o tema das pedras da calçada. Naqueles tempos difíceis, um célebre dito popular asseverava que uma grande desgraça nunca vinha só, e um outro confirmava que era tão triste, que até fazia chorar as pedras da calçada…

Não sei, nem faço ideia donde teria vindo a comparação, por mais voltas e reviravoltas que tenha dado à minha imaginação. Terá isso que ver com os carros de bois ronceiros, chiando desalmadamente a cada volta das rodas de madeira revestidas a ferro, ao contrário das dos carros de hoje, silenciosas, de borracha? Talvez não.

A verdade é que as calçadas antigas eram feitas com a arte, o suor e as lágrimas dos calceteiros da época, num trabalho esgotante e mal pago, de sol a sol.

Foram a pouco e pouco substituídas pelo betão e agora, nesta era do automóvel cómodo e vulgarizado até à exaustão, as gentes mais novas nem se dão conta de como era tudo antigamente…

Ontem recebi um mail de pessoa amiga, com uma série de fotografias de lindos trechos de Calçada à Portuguesa, dispersos pelo mundo e pus-me a pensar quantos portugueses terão dez minutos de tempo livre, para apreciar tais obras de arte. As fotografias haviam sido tiradas por uma senhora estrangeira de nome arrevesado, mas de fino gosto e provavelmente de cultura acima da média.

No apanhado viam-se trechos de calçada de vários locais de Lisboa, Coimbra, Faro, Porto, Setúbal, Castelo Branco, Leiria, Évora, etc., e também de diversas cidades da Madeira, dos Açores, de Angola, de Macau, de Brasília, do Rio de Janeiro, na famosa praia de Copacabana…Com as representações das ondas, dos navios, dos brasões, de heróis, santos, igrejas, símbolos, flores e simples desenhos geométricos, a preto e branco, ou outras cores, as pedras aí estão, aguentando anos e anos de indiferença, mostrando a sua beleza irresistível a quem quer ver…

A Calçada à Portuguesa ganhou fama. Nas minhas deambulações e leituras pude apreciar muitos exemplares dessas obras de arte quase desconhecidas da maioria dos portugueses, mas que, episodicamente, vão aparecendo nos postais turísticos de meio mundo. E lembrei-me, entre outras coisas, de que, nos tempos da extracção da borracha na América do Sul, os barcos portugueses subiam o Rio Amazonas, transportando pedras cortadas em Guimarães, para as calçadas das cidades de Manaus, no Brasil e de Iquitos, no Peru.

E deve haver muitas, muitas outras localidades, no estrangeiro, com esta marca portuguesa bem impressa.

Pela minha parte, há uns anos a esta parte que, de máquina compacta presa no cinto, à japonesa, me entretenho, em passeios ocasionais, a tirar fotos das mais variadas coisas e, entre elas, de alguns trechos de Calçada à Portuguesa, a mesma calçada humilde e bela que os portugueses pisam todos os dias sem olhar sequer, sem pensar por um segundo apenas, no esforço exigido aos artistas que a fizeram e que souberam transformar barrocos em obras de arte as quais, ao contrário de tantas outras que são guardadas em museus, ali estão expostas às intempéries…no chão, humilhadas, mas resistentes, exuberantes, orgulhosas e sempre vivas…

Seria bem interessante que alguma entidade nacional se ocupasse de referenciá-la, fotografá-la, catalogá-la e divulgá-la, como a verdadeira, a suprema marca «made in Portugal», sem concorrência de ninguém. Mas seria descabido, também tentar saber a sua origem? Porque, nos tempos de hoje, é necessário o registo de uma patente, sobretudo para aquilo que não deve prescrever…

Desculpas pela minha ignorância da matéria.

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