A falta de civismo e outras coisas
Começo a não ter pachorra para as patacoadas que se ouvem e se publicam por aí. A Justiça é uma necessidade da Sociedade, tem que ser entendida como um bem que deve ser estimado e bem utilizado, para sua própria preservação e defesa. Ora o que vemos todos os dias são atitudes irresponsáveis, vindas de dentro e de fora dela, em número cada vez maior, como se a Justiça fosse um brinquedo a ser jogado ou manobrado ao gosto de uns, aos caprichos de outros, ao sabor dos interesses de mais uns quantos…
Há também quem diga que sempre foi assim, que a Justiça sempre foi manobrada pelos grandes, os ricos, os poderosos, que sempre foi um joguete ou uma farsa na mão de certos agentes menos escrupulosos, colocando na mira da sua senha justiceira os pobres, os humildes e os desprotegidos da fortuna. Mas não é certo. A verdade é que em todas as profissões há bons e maus executantes, com bons e maus resultados, e a intenção da verdadeira Justiça não pode deixar margem para dúvidas, no seu desejo firme de actuação independente, honesta e correcta da aplicação das leis e da moral, podendo concluir-se, felizmente, que as aberrações que algumas vezes se verificam são apenas as excepções que confirmam a regra.
Tenho interiorizado que a falta de civismo da nossa gente, classes mais cultas incluídas, é o grande responsável pelo caos e a ineficácia da Justiça Portuguesa e ninguém poderá tirar-me essa ideia da cabeça. Que outra coisa significa o acumular de acções, recursos, contra-ordenações e providências cautelares, com a sua montanha de citações, papéis, decisões e contra decisões que vemos anunciadas todos os dias?
Ora isto não é Justiça. Muito menos é a Justiça que nós ambicionamos. É o bloqueamento total da Justiça que conduzirá inevitavelmente à falta dela! E por isso é que o senso comum começa a olhar a Justiça de lado, enquanto os sabichões e os oportunistas se vão servindo dela o mais e o melhor que podem.
-O senhor não falou verdade!...
-Está a chamar-me mentiroso? Vou metê-lo em Tribunal!
-Por que motivo estaciona o carro sempre à minha porta?
-Porque me dá jeito…
-Vou metê-lo em Tribunal!
-O senhor insultou a minha filha
-Não insultei nada, só disse que era uma gaja boa…
-Sacana, filho da puta, vou já metê-lo em Tribunal!
-Eu também vou metê-lo em Tribunal, porque me está a chamar nomes, seu aldrabão, seu vigarista…
-O senhor vinha em excesso de velocidade, está multado.
--O senhor guarda não pode provar isso…
-Posso, está aqui marcado no aparelho…
-Isso não presta. Meta o seu aparelho no cú…
-Acompanhe-me à esquadra, por contra-ordenação grave e falta de respeito à autoridade… Será presente ao juiz…
-Eu sou advogado, o senhor é um incompetente e um prepotente, vou metê-lo em Tribunal!
-Quanto custa o serviço?
-Trinta euros e vinte cêntimos.
-Tome lá cinquenta e dê-me o troco.
-Você pensa que eu sou uma máquina de trocos, ou quê?
-Se não tem troco, não pago!
-Isso é que era bom! Vou chamar a polícia, seu sacana!
-Sacana? Com quem pensa que está a falar? Diga-me o seu nome que já memorizei a matrícula do seu carro e a empresa proprietária…
-Que está para aí a dizer, seu palerma? Era o que faltava! Não o deixo sair daqui enquanto não pagar, que tem aí notas mais pequenas, eu bem vi.
-Isso é comigo. Tome lá, seu malcriado. Pode ter a certeza de que vou metê-lo em Tribunal!
-O senhor não tem bilhete, tem que pagar multa. O autocarro não sai daqui se não pagar ou enquanto não chegar a polícia.
-Até dá jeito, que está a chover lá fora…
-O senhor ainda está a gozar comigo? Vou testemunhar na polícia e pedir à Companhia que o meta em Tribunal…
Podia continuar até à exaustão.
Coisas destas são o pão-nosso de cada dia. A maioria delas poderia ser resolvida no local e apenas com civismo e bom senso, mas vão enchendo os tribunais, umas tantas dando até origem a citações intermináveis, -como a do deputado voador -a audições de montanhas de testemunhas, a recursos vários, à contratação de advogados de defesa e de acusação…a anos de pura «Injustiça»!
A nova caricatura da «Injustiça» actual, para além das citações intemporalmente citáveis, está agora na moda das providências cautelares. A «malta» mete providência cautelar, por dá cá aquela palha. Basta para tal não estar disposta a cumprir alguma lei da Assembleia da República, um decreto governamental, uma determinação autárquica, ou uma mera circular de Administração Regional e por aí fora. São às carradas as providências cautelares, a grande maioria rejeitadas e arquivadas à primeira, mas outras só ao segundo ou ao terceiro recurso, para desespero dos tribunais e das administrações, mas para gáudio, ocupação e lucro dos advogados e outros intervenientes, em tempo de alto desemprego…O regabofe poderia dar origem a vários livros de histórias chocarreiras, se não fosse a tristeza dos prejuízos decorrentes destas anormalidades que o País paga, com língua de palmo. É o Estado de Direito que temos…do direito de empata, do direito à parvoíce, à defesa dos direitos ao laxismo adquirido, do não fazer nada… tudo menos tentar suicidar-se que dá prisão directa, se a acção não for concretizada…
A «Injustiça» não fica por aqui. Os casos que citei, entre milhares possíveis e verificados são, ainda assim, os mais «mexerucos» da Justiça, talvez os mais fáceis de resolver.
Os grandes casos, os mediáticos, aqueles que duram anos e anos, que empatam os tribunais de alto a baixo, enchem os arquivos, mexem com crimes de atentado à moralidade ou movimentam centenas de testemunhas, muitos milhares, milhões de euros, atentando fortemente contra o desenvolvimento nacional, aqueles que parece que nunca chegam ao fim e, quando chegam, a sentença já não serve para nada, são também outro dos grandes cancros desta Justiça infeliz que o País tem, vítima da falta de civismo desta rapaziada respondona mas pacífica que povoa a Nação da mais baixa criminalidade da CE, com mais polícias por metro quadrado que todos os restantes membros dela, com mais presos, preventivos ou não, com mais processos em tribunal ou arquivados…com mais juízes, mais advogados…e também mais treinadores de bancada.
Portugal é, com a nossa Justiça à cabeça e matematicamente falando, um enorme problema, uma equação a várias incógnitas, com solução indeterminada! Não quero já dizer sem solução…
Porque andam todos os sábios a discutir, há anos, o problema da Reforma da Justiça, dentro e fora dela, mas sem saber, ao menos, equacioná-lo, isto é, sem tentar solucionar antes a questão primordial, a educação das gentes que se faz em casa e nas escolas, onde pais e professores se baldam por igual, entretendo-se a mostrar às criancinhas, quase à nascença, como se protesta contra tudo o que é trabalho responsável, como funcionam os estratagemas para ganhar facilmente a vida, como se pode enrolar o vizinho do lado, o patrão, a autoridade, o fisco -e a Justiça, se for caso disso!
E, para cúmulo, a Imprensa colabora eficazmente., apresentando também prazenteiramente ao «pagode», por tempos infindos, os maus exemplos, as más situações e as más soluções, como se fossem obras de arte, peças raras dignas da admiração geral.
A Justiça Portuguesa, apesar de tudo, ainda é merecedora de apresentação em peças de melhores autores, com cenas mais dignas e representadas por melhores actores, para atrair e levar ao público maior civismo e cultura.
Claro que, em tudo e em toda a parte, é sempre fácil falar de fora…