Crónica do antes e do depois...
Um dos meus prazeres favoritos é a leitura do jornal, de manhã, acompanhada de um cafezinho, numa esplanada ou num salão amplo, mesmo que cheio de barulho indistinto. Não o ouço. Leio o jornal tranquilamente, algumas vezes de trás para diante, sem prestar atenção ao que se passa à minha volta.
É fantástico! Em casa, não posso abstrair de um ruído mínimo, não consigo ler o jornal atentamente, não consigo abstrair das conversas circundantes, não consigo fixar a atenção nas linhas do periódico...
1955. Quando era estudante universitário, nos meados da década de 50, gostava de ir ao café e permanecer ali até me fartar. Mas levava comigo um caderno de apontamentos, entretinha-me a lê-los, no meio de toda aquela barulheira de fundo, da qual abstraía totalmente. No café Golo, por exemplo, havia uma aparelhagem de discos caça níqueis e era frequente os clientes meterem a sua moedinha para ouvir, em altos berros, os últimos êxitos de Dean Martin, Frank Sinatra, Diana Dors e Elvis Presley… Isso tinha uma vantagem: acabava com a individualização de alguma conversa da mesa mais próxima que, para mim, era fatal.
Assim, de café em café, tirei o curso com boas classificações. Claro, passava a maior parte do tempo fora de casa.
Outra das minhas técnicas de estudo baseava-se em andar de carro eléctrico. Como tinha passe, saía da faculdade, percorria a cidade em todos os sentidos, cronometrava os tempos que os eléctricos demoravam entre os pontos de cruzamento ou de finalização das linhas e aproveitava para estabelecer um mapa-roteiro com horários, coisa que a Carris não facultava aos utentes. Não utilizava os autocarros, por serem mais caros os passes e, além disso, balouçarem imenso, o que dificultava a leitura e podia provocar qualquer traumatismo oftálmico. Quando chegava a casa, depois das aulas da tarde, trazia as lições estudadas e entretinha-me a ler literatura diversa, ouvir peças de música clássica, etc.
Também estudava ao som de música erudita…
Uma vez, resolvi adquirir um rádio portátil – que naquela altura não era tanto – que consumia um ror de pilhas, com as suas válvulas todas (ainda não havia transistors) e, para que não houvesse tropeços com a lei, apressei-me a registá-lo, como era obrigatório fazer. Oito dias depois da compra, estava eu muito feliz a ouvir na Emissora Nacional um qualquer Rigoletto, bateram à porta e fui abrir, pressuroso. Eram dois fiscais.
-Sabemos que o senhor comprou um aparelho de rádio portátil de marca TKD e queremos ver a sua licença.
-Façam favor de entrar.
Fui à minha gaveta privativa, tirei o comprovativo do registo e mostrei aos inspectores.
-Queremos ver também o rádio, se faz favor!
Lá fui buscar o aparelho e então, com todos os pormenores, confrontaram os números de série de fabrico com os do papel de registo provisório, olharam um para o outro e um deles virou-se para mim e disse:
-Está tudo em ordem! Dentro de oito ou dez dias receberá a licença definitiva. Não se esqueça de que não pode vender, trocar ou mesmo destruir o aparelho sem avisar. Caso contrário, poderá ser incriminado e até preso. Não se esqueça de pagar a respectiva licença, anualmente, de acordo com a lei. Boa tarde!
-Boa tarde!
Estas cenas de fiscalização nem sempre eram assim tão pacíficas. Numa das minhas viagens rotineiras de estudo no eléctrico, um vizinho de banco resolveu acender o cigarro – que então ainda não era proibido nos meios de transporte – com o isqueiro que guardou, rapidamente, no bolso do casaco do lado da janela. Logo um fiscal apareceu e exigiu:
-A sua licença de isqueiro?
-Qual isqueiro?
-O seu isqueiro. Não se faça de parvo, que eu bem vi.
-Que é que o senhor viu? Eu não uso isqueiro, só tenho fósforos!
-Faça o favor de se levantar. A multa é de duzentos e cinquenta escudos e a devolução do isqueiro. Dê-me já o aparelho!
-Qual aparelho? Faça o favor de me revistar. Se o encontrar, é seu. Se não o encontrar, não pago multa nenhuma e exijo que o senhor me peça desculpas por este equívoco. É o mínimo.
E o fulano levantou-se, revirou os bolsos, expôs tudo o que trazia e virou-se com ar triunfante para os circundantes:
-Eu não minto. Estes senhores fiscais, eu compreendo-os, têm que apresentar serviço mas, desta maneira, não!...
E o fiscal:
-Não me convence, apesar de tudo. Não tardarei a apanhá-lo em flagrante, noutra ocasião. Não me escapará! Pagará com língua de palmo!...
-Até lá!...
Eu bem vira o fulano, no momento de revirar o bolso, lançar o isqueiro, sub-repticiamente, pela janela fora. E não fora só eu. Mas a licença de isqueiro era uma taxa tão impopular que não havia ninguém que a pagasse e muito menos que denunciasse a sua posse!
Já na década de sessenta, o aparecimento da televisão trouxe ao governo mais uma fonte de receita, com o estabelecimento de uma nova licença. Ninguém escapava! E os fiscais apareciam com grande frequência. Então os utentes, com o passar do tempo, engendraram a forma de dar a volta ao texto: uma licença era mostrada sempre, com o mesmo televisor, embora, por vezes, houvesse em casa três ou quatro aparelhos ocultos!
Até que o 25 de Abril acabou com todas essas licenças e as respectivas habilidades.
E a partir daqui, ler, ver e ouvir notícias passou a ser uma coisa banal, não paga e não censurada…
2005. Vou comprar o jornal, logo depois do pequeno-almoço, e delicio-me com a sua leitura, no café de uma esplanada perto de casa. Mas faço eu próprio a minha crítica das notícias. Estou no meu direito! Faz parte da minha liberdade.
Uma coisa me custa, na apreciação que faço das notícias dos periódicos: a falta de ética – direi mesmo de seriedade – que cada vez mais se nota, na apresentação das mesmas. Será que o fim da censura e a liberdade de imprensa dá aos jornalistas o direito de publicarem por vezes notícias tendenciosas, falsas, distorcidas, eivadas de truques, sem o mínimo respeito pelos leitores? Quem autoriza – ou obriga – um jornalista a publicar um título garrafal em completa discordância com o sentido do texto subjacente? Ou a caluniar, ou mesmo acusar alguém sem julgamento e até mesmo sem provas? Ou… ou… ou…
De tempos a tempos, alguém ganha uma causa a um jornal e envia um desmentido para ser publicado. E o informativo procede à sua desinformação, publicando a notícia em letra miudinha, numa página de interior, disfarçada o mais possível, por vezes adicionada de comentários de interpretação duvidosa para que ninguém dê conta do falhanço, que o jornal tem sempre razão...
A honestidade, nos dias de hoje, será já um acto de heroísmo?
A liberdade é, em si mesma, uma coisa maravilhosa. Mas, mal utilizada, é uma coisa terrível.
Quando abro o jornal e descubro algum desses maus aproveitamentos da liberdade por parte de quem tem a obrigação de informar com verdade e isenção, até o café me sabe mal!...