sábado, 7 de junho de 2008

SARDINHA ANALFABETA

Crónica de um fim anunciado

Quem não conhece o ditado popular, a mulher e a sardinha querem-se da mais pequenina? Sei não, como dizem os brasileiros! A verdade é que já ninguém sabe, nem quer saber dos ditados populares, para nada.

Isso da mulher e da sardinha pequeninas era dantes! Agora, a pesca da petinga, está proibida e só a grande, a gorda, a turística pode ser capturada! Nas tascas e restaurantes de terceira de muitas das nossas praias, durante o Verão, a sardinha gorducha ainda pinga na brasa, no pão ou no prato, tempera o ar marinho com o seu cheiro penetrante e faz correr água na boca de muito portuguesinho, acompanhada do tinto da casa e atestada com a velhinha bagaceira da ordem que no Algarve é a apreciada e já quase também proibida medronheira. Também os estrangeiros, turistas ou residentes que fazem uso das nossas praias, se metem na sardinha assada e se enfrascam nos vinhos engarrafados nacionais mais adequados. A sardinha, ao contrário do que diz o fado, já chegou à mesa do rei. Vende-se e é muito apreciada actualmente em restaurantes de primeira, em contextos determinados, com preços de primeira, claro. Nem outra coisa seria de esperar.

Ontem o D.N fazia notar, em artigo interessante, provavelmente motivado pela greve gasolineira dos pescadores, que o preço da sardinha aumenta dezassete vezes, da lota ao prato, o que é um verdadeiro escândalo.

Mas isso não se passa apenas com a sardinha. O DN dá exemplos ainda piores com outros peixes bem conhecidos dos portugueses de antanho, como por exemplo o robalo. Digo de antanho, porque os «peixívoros» de hoje já quase não sabem o que é um robalo de alto mar (caríssimo), mas apenas o de aquário, comprado no hipermercado apenas ao dobro do preço da sardinha!

A pouco e pouco, a própria sardinha, como o pão, antigamente o alimento dos pobres, vai passando à história, quer pela quantidade cada vez menor que é apanhada, quer pelo preço cada vez maior a que é vendida.

Estou convencido de que, quando o preço subir mais qualquer coisa, deixará de ser pescada, por falta de compradores e alguém se lembrará de fazer sardinhas a martelo, isto é, no aquário da esquina, alimentadas a ração com sabor a fruta...

Mas quem sabe se aqui, nos aquários, não estará a solução futura para os amadores de peixe em Portugal, ainda que tenham que alterar os seus gostos refinados?

Eu, se fosse pescador, há muito teria deixado a vida dura do oceano, trocando o bronzeado à força no mar alto pela tosta tranquila e sem riscos à beira dele e fazia, com os compinchas e os vendedores da lota, uma sociedade de criação de peixe em aquário, com as vantagens inerentes: menos trabalho, menos risco, menores contingências climáticas, maiores vendas, mais fácil distribuição aos consumidores, preços de venda mais baixos e maiores lucros de produção! Seria o não sei quantos em um! Seria a quadratura do círculo.

Claro que soluções destas toda a gente recomenda, em todo o mundo, quanto mais em Portugal, o país da Terra com mais treinadores de bancada por metro quadrado. Só os pescadores é que não querem saber nada disso. Gostam da tradição, gostam da vida do mar, gostam das dificuldades da vida, gostam das suas pequeninas traineiras balouçando inseguras nos mares bravios, gostam de consertar a redes nos dias de saída difícil, gostam de apanhar a sua piela, de vez em quando, sempre que a faina foi melhor ou escaparam de algum transe mais difícil...

Por outro lado, também temos que estar de acordo com a previsão de que a sardinha de aquário, se vier algum dia a ser cultivada e tal como o outro peixe, certamente não terá o sabor da natural, pescada com tantos sacrifícios e até com umas quantas mortes à mistura! Só por isso, pelo deleite dos consumidores e a teimosia ou vingança dos pescadores ante o mar violento e traiçoeiro que rouba tradicionalmente os seus familiares, a pesca continua nos mares portugueses, mesmo com risco de acabar com todas as espécies de uma vez, sardinha incluída!

Mas, de qualquer forma, o fim está à vista, num prazo que poderá não ser muito longo. E desta forma anacrónica se acabará também a peçonha das reclamações periódicas e chatas cada vez que sobe o preço do gasóleo.

Será mesmo um fim, sem retorno, mesmo que a CE se esfalfe por limitar ao mínimo as capturas, para preservar a espécie.

A menos que os filhos dos teimosos pescadores de hoje, em vez de emigrem para a Espanha ou para a Noruega, se tornem aquicultores de profissão. Isto, claro, se não se dedicarem de alma e coração a estudar qualquer curso de Direito ou Letras numa das tantas universidades que andam por aí à pesca de alunos para sobreviver...mesmo sem isca, sem cana, sem rede ou sem anzol.

Os portugueses alfabetizados de hoje bem sabem que já lá vai o tempo da sardinha analfabeta que se vendia a pataco e se deixava apanhar pertinho da praia, pelos barquinhos a remos esforçadamente manobrados por pescadores tradicionais que nem sabiam ler. Agora ela é mais rara, mais sabida, mudou-se para mais longe, e exige meios de captura de alta tecnologia que não estão ao alcance dos advogados nem dos letrados formados nas nossas melhores universidades.

E, como não estudamos Física e Matemática, nem mudamos de rumo, dentro em breve só nos restará importá-la, provavelmente congelada, para cozinhar, à falta de carvão, pimentos e batatas nacionais, nalgum sofisticado e importado microondas...

Deus me livre dessa!

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