O cerco de Lisboa pelos castelhanos
«Quando a juíza presidente do colectivo que julgou Isaltino Morais perguntou aos advogados se tinham algo a opor à leitura resumida do acórdão, muitos dos presentes na sala de audiências do Tribunal de Sintra suspiraram de alívio» …
Foi assim que uma senhora jornalista deu início a interessante crónica, descritiva do evento, com tantos pormenores como a crónica de Fernão Lopes descrevendo as agruras do Cerco de Lisboa pelos castelhanos, nos tempos de El Rei D. Fernando, o Formoso, e da sua querida D.ª Leonor Teles. O retrato da leitura dessa sentença sem fim à vista foi bem feito. Parabéns!
Alguns parágrafos da notícia, no entanto, deram-me que pensar, simultaneamente pelo rigorismo, o absurdo e o ridículo.
A audiência teve início cerca de uma hora depois da marcada, com público e jornalistas a arder de impaciência. Todos perguntaram por quê, sem atinar com a resposta.
Contudo, logo ao abrir a sessão, todos ficaram a saber. O acórdão da sentença constituía um grosso volume que, segundo as regras, teria que ser lido na presença das partes interessadas. Só com a anuência destas poderia ser dispensada essa leitura.
A verdade é que, com a anuência geral, ficou logo decidido pelo colectivo das três juízas, ler apenas um resumo, o que deixou a assistência a respirar fundo e os jornalistas, ávidos de notícias frescas, a preparar os blocos de apontamentos, com frenesim. E assim, deu-se início ao demorado «Cerco de Lisboa», isto é, à leitura do resumo do acórdão da sentença do processo Isaltino ao longo de cinco longas horas, durante as quais foi possível observar um pouco de tudo: dicção cansativa, lenta ou acelerada, em voz alta ou imperceptível por parte das já cansadas senhoras juízas, sonolência nem sempre oculta, de muitos assistentes, impaciência da maioria, incapaz de reter o que quer que fosse dessa verdadeira maratona, qual sermão de Santo António aos peixes…
Tal como no dito Cerco de Lisboa, a violência deste acto, a que felizmente não assisti, deve ter sido inaudita, e as meritíssimas juízas, apesar de habituadas a estas «xaropadas» legais, devem ter saído dali em fanicos. Os senhores jornalistas, também reincidentes em coisas deste género e outras ainda piores, só descansaram quando, em correria desenfreada, começaram a transmitir às redacções as conclusões finais do veredicto. A assistência, impaciente mas persistente na sua «sonolência» tradicional, deu um suspiro de alívio e partiu apressada, para tomar uma bica bem forte no café mais próximo. Até o condenado Isaltino saiu acorrer para o WC, que já não podia aguentar mais…
No fim da empreitada, como se diria em termos corriqueiros mas bem adequados às circunstâncias, todos partiram dali com uma indizível sensação de vazio e de tempo perdido. Todos, menos as meritíssimas juízas, para as quais tudo não passara de mais um dever cumprido, com excelência e rigor absolutos!
Que a investigação de uma suspeita ou de um crime demore o tempo necessário, todos concordamos, embora esperemos e até exijamos sempre o seu encurtamento. Mas não sei o que pensarão disso as meritíssimas juízas de processos intemporais.
Que um resumo bem feito, mesmo de um longo conteúdo, ultrapasse meia dúzia de páginas, é um absurdo para gentes normais. Só as meritíssimas juízas acharão necessário e fabuloso um resumo da duração deste.
Que uma leitura de cinco horas, grande parte imperceptível, possa ter servido para alguma coisa, além do cumprimento de uma formalidade ridícula, todos estamos de acordo. Todos, menos as meritíssimas juízas. Limitaram-se a cumprir o seu dever e, por pouco, não tiveram que ler o grosso volume do acórdão, às partes e à heróica, disciplinada e complacente assistência.
Que o acusado e a sua defesa, ou a acusação, tenham ganho algo com essa prolongada leitura, todos discordamos completamente, tanto mais que podem, legalmente e sempre que quiserem, ter acesso ao acórdão na sua totalidade, lê-lo tranquilamente, estudá-lo, contestá-lo até, para impugnar ou recorrer da sentença aplicada para um Tribunal de instância superior. Só as meritíssimas juízas julgam que sim.
Que a Justiça perca todo o seu precioso tempo em leituras deste tipo que não interessam a ninguém, todos estão em completo desacordo, porque existem muitos milhares de processos à espera de resolução, por falta de tempo, mesmo trabalhando nas férias. Todos, menos as meritíssimas juízas que seguiram à risca a sua super minuciosa interpretação das determinações dos seus códigos e regulamentos, sem se preocuparem absolutamente com mais nada que não fosse a demorada preparação do resumo, a sua correcção e impressão, a sua leitura e arquivamento.
Poderia continuar a citação de absurdos, contra-sensos e ridicularias sobre este evento, que a gente comum como eu não entende, mas provavelmente só terei razão, usando da minha liberdade de expressão, no meu direito à indignação, como qualquer cidadão que se preza. Não sou meritíssimo.
Além disso, as meritíssimas juízas, se soubessem o que aqui escrevo, comentariam logo, no mínimo, que sou um grande ignorante destes temas. E a verdade é que, neste ponto, estou em perfeita concordância com elas, Não percebo mesmo nada dos processos da Justiça. Mas desejaria perceber um mínimo que fosse…
Desejaria saber, por exemplo, por que motivo a Justiça não se adapta à vida real e se faz compreender pelos cidadãos, na era dos computadores e das viagens à Lua, e continua teimosamente agarrada aos processos dos mangas-de-alpaca de XVIII e XIX.
Ora eu, que não sou meritíssimo, como disse, atrevo-me a dizer que não seria por simplificação e aceleração de processos, por utilização de uma linguagem compreensível às populações e abandono de regras ou posturas arcaicas, que perderia a sua importância decisiva na Sociedade, mesmo o seu próprio protagonismo. Antes pelo contrário.
Ao menos os códigos já não são impressos em latim…
Para finalizar, ainda voltando à crónica da senhora jornalista, não resisto a transcrever o parágrafo com que termina:
Quando a juíza ditou a decisão dos sete anos de prisão efectiva, fez-se silêncio na sala, Isaltino saiu directamente para a casa de banho onde se demorou e no meio da confusão da gente que comentava a decisão e dos jornalistas que aguardavam um comentário do autarca, avistei a minha filha (que pretendia encaminhar para Direito). Aliviada com o final da audiência disse-me, zangada, enquanto caminhava para a saída: “Mãe, esquece”.
É o que eu também vou fazer, esquecer o cúmulo das incidências da leitura desta sentença sem fim à vista. Consegue ser muito mais chato que a do Cerco de Lisboa pelos castelhanos, do grande cronista Fernão Lopes, mesmo escrito em português arcaico.
Disse o mesmo Fernão Lopes que só a fome e uma epidemia de peste fizeram levantar o cerco…
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