quinta-feira, 23 de julho de 2009

JUSTIÇA NO CAMPUS


Deformações corporativas

Ficou célebre o aforismo romano «dura lex, sed lex», tão célebre que figura por aí, a torto e a direito, na maioria dos Palácios da Justiça deste belo País tão adorado por uns e simultaneamente vilipendiado por outros tantos. Durante anos e anos, sobretudo desde o afastamento das ordens religiosas, a Justiça assentou arraiais nos conventos deixados vagos, que aliás serviram também para albergar Quartéis, Serviços Camarários, Hospitais, Delegações de Finanças, até Pousadas e Hotéis de Charme e muitas outras coisas mais. Poucos foram os que permaneceram sem uso.
A pouco e pouco, não obstante as numerosas remodelações, os conventos foram-se tornando obsoletos para as funções em que foram inicialmente aproveitados, e assim começaram lentamente a proliferar os tão pomposamente denominados Palácios da Justiça.
Era necessário dignificá-la, por isso não podia continuar a funcionar em conventos e outros edifícios adaptados segundo as circunstâncias. Há que louvar todos os profissionais da Justiça que, durante largos anos, exerceram o seu mister em condições menos adequadas, mesmo assim, em paralelo com o nível de vida das outras instituições e da população portuguesa em geral.
Com altos e baixos, a Justiça lá foi sendo aplicada e, por último, após quase meio século de subserviência ao poder político, ressuscitou para a independência total da Magistratura, com a Constituição saída do 25 de Abril. A política de construção de Palácios de Justiça por esse País fora, iniciada nos tempos de Salazar, continuou, para agrado dos profissionais e das gentes que a eles recorriam, mas alguns conventos ou dependências permaneceram até aos dias de hoje, alguns com uma carga emblemática tremenda, apesar das condições de trabalho exigidas. Aguentaram todos com estoicismo e raras vezes se queixaram disso, porque o brio e a independência da Magistratura a isso obrigavam. Mas os tempos foram mudando.
Com as vantagens do uso dos automóveis, dos telemóveis e dos computadores, os Senhores Juízes, sem abdicar do seu estatuto de Quarto Poder do Estado, mas à semelhança dos outros mortais com muito menos poderes e prerrogativas, não puderam resistir à tentação de criar e explorar cautelosamente um sindicalismo de feição corporativa e reivindicativa. Não só.
Desde há algum tempo a esta parte, vimos os próprios Juízes reclamarem, ameaçarem com greves ou simples paralisações de «révanche» contra os poderes governamentais, por motivos puramente corporativos que não abonaram nada em favor de uma Justiça que a população se habituara a ver sempre bem de fora e muito acima destas trapalhadas.
Agora, depois de muito sangue, suor e lágrimas passadas nos celebérrimos claustros do Tribunal da Boa-Hora e noutros espécimes inadequados dispersos pela Capital, engolindo queixumes e dificuldades de toda a ordem, 16 destes Senhores resolveram não comparecer à inauguração do moderno Campus da Justiça, na igualmente moderna Urbanização da Expo, onde eles mesmos, num universo de 2400 funcionários irão exercer a sua actividade, alegando defeitos na construção com falhas de segurança na circulação de Juízes e presos, enfim, condições de instalação, funcionamento e a sua própria falta de privacidade. «Desculpas esfarrapadas», como já comentou o Bastonário da Ordem dos Advogados.
O que sobressai desta atitude, tomada numa cerimónia de inauguração do que há tanto tempo foi uma ambição de sucessivos governos, é apenas mais uma tentativa de boicote, mais um aspecto de baixa politiqueira, do «confronto aberto com as instituições do Estado de Direito». Para o Bastonário, esta «guerra aberta» não é a forma de resolver os problemas da Justiça, defendendo que é necessário existir «espiríto de colaboração».
Estão no seu próprio direito! Mas a sua atitude não é própria de Juízes. No mínimo, perderam uma boa ocasião de demonstrar o seu respeito pelas regras de urbanidade social e, sobretudo, pela lei não escrita mas consensual da sua própria superioridade moral que está acima de direitos ou simples reivindicações corporativas. A Justiça das consciências, deviam sabê-lo, não é a mesma de uma certa Justiça virgulista de gabinete alcatifado, ainda que os romanos tenham deixado escrito para a posteridade que «dura lex, sed lex».
Passados os discursos de circunstância, assisti, no noticiário duma estação de TV, aos comentários dum repórter, finalizado o acto da inauguração do conjunto dos 11 edifícios do Campus da Justiça. Dizia ele, entre várias coisas, que todos os edifícios possuíam fachadas envidraçadas e não proporcionavam elevadores privados aos Juízes, o que eliminava completamente a privacidade necessária à sua função. Acrescentava ainda que, ali ao lado, havia um bonito lago, do fundo do qual, mesmo ao alcance da mão, era possível apanhar bonitas e roliças pedras, como exemplificou…
Moral da história: mesmo nos tempos que correm (em que até desapareceram os óculos sobre as vedações das bancadas das repartições), a Justiça, em Portugal, tem enorme dificuldade em fazer-se de forma transparente, enquanto a Comunicação Social, por sua vez, dispõe de grande facilidade em encontrar armas de arremesso.
Que outra coisa, aliás, poderia acontecer a uma Justiça enclausurada e domesticada anos e anos em conventos e a uma Comunicação Social que apenas há trinta e cinco descobriu que podia, finalmente, atirar pedras?

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