sexta-feira, 12 de fevereiro de 2010

CARNAVAL TODO O ANO


Seriedade por um dia

Agora, que o Carnaval, ao que consta, está a chegar, ocorre-me perguntar se o calendário que vigora em Portugal não estará equivocado, porque todos os dias assistimos às palhaçadas mais incríveis, feitas pelos actores mais variados e insuspeitos, nos locais mais diversos e assumidamente tidos como improváveis.
Hoje mesmo, depois de assistir a mais uma dose gigante de folia burlesca, senti que estava a ficar enjoado sem remédio. O excesso fez-me perder o inicial e saudável desejo de sorrir, suprimindo igualmente a minha própria voz crítica.
Por isso, agora, embora possa parecer anacrónico, até estou de acordo.
Acho muito bem que o povo se divirta, nem que seja, ao menos, uma vez no ano.
Que lance foguetes e se mascare daquilo que não é, para se disfarçar daquilo que é, e vice-versa!
Que gaste o que não tem, para parecer que tem muito.
Que faça barulho ensurdecedor, para transformar em ruído aquilo que durante todo o ano ruminou em silêncio, não foi nem é capaz de dizer a ninguém, com medo de incomodar!
Que tire a barriga de miséria, mesmo por um dia, para enganar os fiadores e preparar-se para o jejum obrigatório do resto do ano!
Que se arme, na terça-feira, em palhaço gigante de cabeça gorda, para ultrapassar, ao menos no seu íntimo, a mesquinhez, o corpo e a alma de fuinha que mostra diariamente aos seus concidadãos!
Que atire aos quatro ventos serpentinas e papelinhos de cores, para que todos possam imaginar como é possível sair da tristeza que incuba durante o ano inteiro, no seu mundo a preto, sem branco à vista!
Que corra, que salte, que se mostre activo até ao exagero, para contrastar com a preguiça e o abandono que nega sempre, e o invade de manhã à noite!
Que cante, que berre a plenos pulmões, tentando mostrar que o seu silêncio de todo o ano é pura falácia!
Que insulte os grandes, os poderosos, aqueles de quem não gosta, já que passa o resto do tempo a bajulá-los, de espinha vergada e sem vergonha!
Que e emborrache, e transborde de alegria sem limites, a tratar de demonstrar que é falsa aquela enorme tristeza que lhe vai permanentemente na alma!
Que mostre em tudo o que fizer durante a quadra carnavalesca, aquilo que não foi capaz de fazer, mas deveria ter feito, ao longo do ano inteiro!
Enfim, que se esforce por ser o que sempre quis ser e não foi capaz de concretizar, isto é, de ser feliz, ao menos por um dia!
Porque assim, deste modo, à custa de um dia de Carnaval calendarizado, assumiremos todos, anualmente, as enormes capacidades histriónicas e burlescas que este mesmo povo tentou a esconder, sem o conseguir, durante trezentos e sessenta e cinco dias, por mais de oito séculos...
Ao menos por um dia ao ano, haja seriedade!

quinta-feira, 11 de fevereiro de 2010

O Meu Discurso do Estado da Nação

Caros concidadãos:
Há três meses que não escrevo duas linhas no blogue.
Uma hora atrás, recém-chegado do consultório médico e mais deprimido ainda pelas patacoadas lidas na sala de espera, fui tentado a escrever o meu próprio Discurso do Estado da Nação e mandar algumas sentenças ao pagode, como agora é o costume de qualquer gato-sapato que se preze, quando me lembrei de que a República era mais velha que eu, vinte e duas primaveras, devia saber muito mais coisas e não precisava dos meus conselhos para nada.
Lá mais para diante, vão ter lugar, efectivamente, as comemorações dos cem anos da República, o que não impede que, antes disso, vá comemorar as bodas de ouro do meu casamento, coisa rara nos dias de hoje, se não houver pelo meio, os tropeços que a idade e outras mazelas nos mandam, como sentenças que não perdoam. Serão comemoradas com a parcimónia, a sobriedade, o carinho e a alegria possíveis, no convívio da família, gente honrada, trabalhadora, em que os mais velhos são credores de bons exemplos aos mais novos, a geração dos portugueses de amanhã.
O Estado da Nação é calamitoso, no seu centenário mas, apesar disso, devemos comemorá-lo com o brilhantismo de que formos capazes. A República merece. Ela não tem culpa dos desvarios dos seus filhos que, como crianças crescidas na fase de transição para a adolescência, são incapazes de assumir as culpas das suas travessuras, tratando de fazer crer que os culpados são sempre os outros. Os filhos da República não foram capazes de crescer mentalmente, nestes cem anos, não obstante o analfabetismo quase total já ser coisa do passado.
Lembro-me perfeitamente, apesar da idade provecta, das travessuras da minha turma do liceu e dos inquéritos sempre inconclusivos que vinham depois, e só serviam para nos fazer sorrir, tal como hoje acontece nos grandes desvarios da vida nacional. Como podem ver, o mal vem de longe…Mas a comparação termina aqui. A vergonha acabava também por aparecer mais tarde, e quase todos a tínhamos como um castigo merecido. Ainda hoje sinto pena das vítimas de algumas dessas travessuras feitas há sessenta e tal anos, apesar de verdadeiramente inofensivas. Ora, como hoje parece que já não há vergonha na cara de ninguém, o estado calamitoso da nação não tem autores porque, lá diz o velho ditado popular, quem não tem vergonha, todo o mundo é seu!
Receitaram-me, os médicos, uma terapêutica de choque, com o único objectivo de prolongar a vida por mais algum tempo, já que a cura é impossível. Vou colaborar com eles, sabendo que o fim da linha está cada vez mais perto. Enquanto há vida há esperança.
E, no entanto, uma grande tristeza me invade, não pelos meus problemas pessoais, mas pela descrença de alguns dos nossos republicanos que não acreditam nem em si próprios e, não contentes com isso, tudo fazem para minar o moral dos restantes e denegrir o país perante estranhos. Assim, com gente dessa que só se compraz em destruir, a nação não irá longe. Paralelamente, os partidos e a imprensa entretêm-se em jogos puramente politiqueiros ou na coscuvilhice mesquinha, numa época de grande crise nacional, ajudados por uma Justiça lenta, ineficaz, cada vez menos independente, cada vez menos ao serviço dos cidadãos, cada vez mais preocupada com o seu ego. Parece que todas estas personagens, defendendo ao extremo as suas teimosias ou interesses, privados ou corporativos, não desejam entender-se e colaborar na terapêutica de que a nação tanto precisa.
A maioria dos cidadãos, justificadamente, vai perdendo a sua confiança nessa gente. Mas, por sua vez, também não se esforça por aí além e pratica até, a nível menor, os mesmos vícios e desmandos daqueles que deveriam dar o exemplo...Como em épocas remotas, os místicos esperam um milagre, ou aguardam pacientemente a chegada de um qualquer D. Sebastião, enquanto outros, menos imaginativos, anseiam pelo regresso de novo Marquês de Pombal, ou até de um segundo Salazar, para acabar com o regabofe dessa rapaziada fina; desejariam impor já e pela força a tal terapêutica de choque necessária que todos os portugueses exigem mas que nenhum dos maiorais se atreve a fazer aplicar, porque os minorais não fazem a mínima tenção de cumprir...
Cobardes! São todos uns cobardes!
Todos, não!!!
Se fossem como eu, aceitavam humildemente o remédio difícil de tomar, com força de vontade e sorriso nos lábios, e não perdiam tempo em discussões estéreis. Poderia recomendar-lhes, sobretudo, que não fossem apenas derrotistas ou más-línguas, que abdicassem das suas prerrogativas e mordomias, que se deixassem de birras e se portassem como homenzinhos, que fizessem algo, por fim que tivessem esperança em melhores dias… mas é lá com eles.
O certo é que nunca vi um doente desesperado de espírito melhorar ou curar-se fisicamente. Por isso, caros concidadãos:
Vou para a minha esperançosa terapêutica de choque, e termino o meu Discurso do Estado da Nação dizendo simplesmente adeus a todos, tristemente, porque sinto que as minhas palavras serão metidas em saco roto…
Aos numerosos irresponsáveis do nosso país sugiro que, ao menos, evitem brindes com whisky e regressem ao tradicional mata-bicho dos tempos de penúria. Desejo-lhes, com sinceros votos de regeneração a curto prazo,
-Saúde e bichas! *

*Para quem não saiba, bichas são as lombrigas, afugentadas provavelmente com um cálice de bagaceira, tomado antes do pequeno-almoço, no antigamente…)