Seriedade por um dia
Agora, que o Carnaval, ao que consta, está a chegar, ocorre-me perguntar se o calendário que vigora em Portugal não estará equivocado, porque todos os dias assistimos às palhaçadas mais incríveis, feitas pelos actores mais variados e insuspeitos, nos locais mais diversos e assumidamente tidos como improváveis.
Hoje mesmo, depois de assistir a mais uma dose gigante de folia burlesca, senti que estava a ficar enjoado sem remédio. O excesso fez-me perder o inicial e saudável desejo de sorrir, suprimindo igualmente a minha própria voz crítica.
Por isso, agora, embora possa parecer anacrónico, até estou de acordo.
Acho muito bem que o povo se divirta, nem que seja, ao menos, uma vez no ano.
Que lance foguetes e se mascare daquilo que não é, para se disfarçar daquilo que é, e vice-versa!
Que gaste o que não tem, para parecer que tem muito.
Que faça barulho ensurdecedor, para transformar em ruído aquilo que durante todo o ano ruminou em silêncio, não foi nem é capaz de dizer a ninguém, com medo de incomodar!
Que tire a barriga de miséria, mesmo por um dia, para enganar os fiadores e preparar-se para o jejum obrigatório do resto do ano!
Que se arme, na terça-feira, em palhaço gigante de cabeça gorda, para ultrapassar, ao menos no seu íntimo, a mesquinhez, o corpo e a alma de fuinha que mostra diariamente aos seus concidadãos!
Que atire aos quatro ventos serpentinas e papelinhos de cores, para que todos possam imaginar como é possível sair da tristeza que incuba durante o ano inteiro, no seu mundo a preto, sem branco à vista!
Que corra, que salte, que se mostre activo até ao exagero, para contrastar com a preguiça e o abandono que nega sempre, e o invade de manhã à noite!
Que cante, que berre a plenos pulmões, tentando mostrar que o seu silêncio de todo o ano é pura falácia!
Que insulte os grandes, os poderosos, aqueles de quem não gosta, já que passa o resto do tempo a bajulá-los, de espinha vergada e sem vergonha!
Que e emborrache, e transborde de alegria sem limites, a tratar de demonstrar que é falsa aquela enorme tristeza que lhe vai permanentemente na alma!
Que mostre em tudo o que fizer durante a quadra carnavalesca, aquilo que não foi capaz de fazer, mas deveria ter feito, ao longo do ano inteiro!
Enfim, que se esforce por ser o que sempre quis ser e não foi capaz de concretizar, isto é, de ser feliz, ao menos por um dia!
Porque assim, deste modo, à custa de um dia de Carnaval calendarizado, assumiremos todos, anualmente, as enormes capacidades histriónicas e burlescas que este mesmo povo tentou a esconder, sem o conseguir, durante trezentos e sessenta e cinco dias, por mais de oito séculos...
Ao menos por um dia ao ano, haja seriedade!