sexta-feira, 7 de agosto de 2009

CEGOS, CÉGUINHOS E CEGUETAS


A real cegueira dos inquéritos

Já em tempos glosei a tese fantasma de que Portugal era um País de ceguetas, a propósito de uma notícia, tipo sondagem de horas vagas, «assegurando» que uma percentagem elevadíssima de portugueses via mal.
Claro que, quando digo que Portugal é um país de ceguetas, não quero asseverar que se trata de uma nação de cegos, ainda que haja muitos mais do que parece. Alguns que o não são fazem-se por conveniência, outros, que não se julgam, são cegos de todo. E ainda há os céguinhos que pedem esmola, os cegos por ignorância, os cegos profissionais e por ai fora...
Como poderemos classificar, nestes grupos, os responsáveis pelos múltiplos inquéritos que nunca chegam a conclusão nenhuma, ou emitem conclusões bizarras, inofensivas ou tendenciosas?
Há duas semanas, o Departamento de Cirurgia da Oftalmologia do Hospital de Santa Maria foi palco de um acidente em que seis pacientes correm o risco de ficarem cegos permanentemente ou com visão muito limitada, num tipo de intervenção habitualmente praticada com sucesso, utilizando aparentemente os mesmos meios e os mesmos procedimentos que até ali tinham sido coroados de êxito.
Que terá corrido mal? Todos gostaríamos de saber.
Numa primeira fase, os comentários da imprensa, depois de queixas dos doentes e familiares, logo levantaram suspeitas acerca do mau funcionamento da Instituição, de um provável descuido dos clínicos intervenientes, etc., etc. A prática da Medicina, em Portugal, foi acusada, mais uma vez, de todos os males e deu-se início, desta forma simultaneamente ignorante, ingénua e leviana, a mais uma peça que seria cómica e ridícula, se não fosse trágica, nem envolvesse vidas humanas em perigo de cegueira total.
Na segunda fase desta trágica telenovela, os clínicos visados, muito fácil e humanamente atiraram as culpas para o Avastin e o laboratório fabricante (neste caso a malvada ROCHE), e não houve variante crítica que não tivesse lugar, tratando de denegrir o medicamento pelos seus eventuais efeitos tóxicos, buscando-se toda a sua história de resultados clínicos adversos, no mundo inteiro. Seguidamente, procurou envolver-se o Infarmed na questão, assacando-lhe responsabilidades pela aprovação do maldito medicamento em Portugal, apesar de se encontrar em uso no mundo inteiro. O mais caricato desta fase veio do conhecimento dado pela Roche de uma circular enviada aos clínicos e à administração do Santa Maria, alertando-os para as bondades do Avastin e, sobretudo para os cuidados e os riscos e efeitos secundários da sua aplicação. Os médicos negaram, evidentemente, a sua recepção, mas nunca puderam negar o conhecimento das restrições que eram aplicadas ao medicamento.
Por outro lado, verificado que, na realidade, nenhum caso de semelhante gravidade, quer pelos efeitos, quer pelo número de vítimas, era conhecido mundialmente, as atenções voltaram-se de novo para a aplicação do medicamento aos pacientes e para as possíveis deficiências das instalações do Bloco de Cirurgia, pensando até numa eventual contaminação das mesmas ou do fármaco aplicado.
Todas estas suspeitas foram sendo lentamente desmentidas, algumas mesmo pela própria natureza e evidência dos acontecimentos e por algumas análises sumárias, outras pela generosidade, ignorância e corporativismo puro dos intervenientes.
Certo é que a honra dos cirurgiões do Santa Maria esteve em perigo e a Ordem dos Médicos, tão célere a desejar inquéritos aos oftalmologistas espanhóis e cubanos que no ano passado despacharam cataratas aos centos, com eficácia e a baixo custo, limitou-se a fazer um comunicado pífio, evitando simplesmente meter-se num assunto que provavelmente pressentia escabroso…
Pressionados pela publicidade dada aos acontecimentos, as autoridades envolvidas decidiram proceder aos respectivos inquéritos. Por essa via avançaram a Inspecção do Ministério da Saúde, o Infarmed e a Administração do Hospital de Santa Maria. Foram mandadas fazer pelos inquiridores as análises ao lote do medicamento utilizado e a supostas amostras retiradas já fora de tempo, do globo ocular dos pacientes, no Instituto Ricardo Jorge.
Numa terceira fase, que já tardava, uma informação anónima pôs a Justiça em acção, como já é hábito. Será porque, quanto mais não seja, é mais barato e dá menos chatices que mover uma acção de denúncia?
Teria, pois, havido um atentado, uma tentativa deliberada de boicote aos médicos, aos serviços do hospital, a alguém mais em particular…
Certo é que, frequentemente, o telefonema ou a carta anónima funcionam para o Ministério Público como a informação sobre a possível existência de uma bomba, ou uma mochila abandonada no metro, para a polícia, no momento em que para esta já se torna mais fácil colocar o dedo no gatilho. Como acontece com os bebés birrentos, também a PJ ambicionou esforçadamente ser protagonista, manifestando a sua preocupação por ter sido deixada de fora, pela magistratura do MP…
Uma quarta fase foi assim despoletada, com a passagem da culpa para a Farmácia do Hospital. Esta não teria os farmacêuticos necessários, não cumpriria totalmente as regras de armazenagem, não teria tomado as devidas precauções na entrega do medicamento, eventualmente tê-lo-ia trocado por outro ou feito deficientemente a sua preparação…
O Infarmed, já a cantar de poleiro, adiantou então, como poeira para os olhos dos ignorantes, a ausência de algumas normas de bom funcionamento da Farmácia do Hospital, o que a Administração do mesmo se prontificou imediatamente a corrigir para não ficar no rol dos culpados.
Também a Ordem dos Farmacêuticos, ao contrário da calculista Ordem dos Médicos, resolveu intervir e fazer uma inspecção própria, por cinco peritos credenciados, descartando qualquer erro na entrega do medicamento, mas não se responsabilizando pelo seu percurso posterior.
E assim, dada por concluída a investigação a todos os intervenientes no processo, não foi noticiada, por qualquer das entidades inquisidoras, nenhuma irregularidade decisiva quanto à preparação e entrega do medicamento ao Bloco Cirúrgico e à sua aplicação aos doentes. Falta ainda a Investigação dos Magistrados do Ministério Público, os sábios das leis, curiosamente os que menos conhecem destes assuntos e tiveram que recorrer a técnicos terceiros.
Ora, chegados aqui, que mais poderá acontecer, como exclamava a personagem de uma célebre telenovela brasileira que há anos correu entre nós? Não sei.
A quinta fase desta trágica história de quadradinhos irá surgir com a apreciação oficial dos diversos inquéritos. Como é hábito, não irão descobrir o que quer que seja, directamente relacionado com o falhanço dos actos médicos ou que possa ser por eles declarado directamente responsável. O relatório final apresentará certamente pormenores em catadupa, mas será na realidade inconclusivo.
Poderei até concluir, sem grande margem para erro, depois de tanta investigação e da intervenção policial, que irão pôr-se a descoberto várias irregularidades menores ocorridas ao longo de todo o circuito do medicamento, desde a sua expedição à sua aplicação no olho de cada paciente, mas nenhuma delas decisiva, ou à qual possa ser atribuída a tragédia. Também nenhum dos profissionais envolvidos será directamente culpado, muito menos a Administração do Hospital ou o Infarmed. Só as suspeitas irão continuar durante algum tempo nos jornais e no sentimento popular, a par do sofrimento e do julgamento feito pelas vítimas, para toda a vida.
Um médico especialista canadiano com larga experiência veio a Portugal e declarou peremptoriamente que nunca tinha assistido a nada semelhante, desde que usa o medicamento, e ficou perplexo com este caso. Também eu, que estou de fora, já tenho uma opinião formada a este respeito, como qualquer treinador de bancada atento ao jogo.
Que me desculpem os senhores médicos, humanos como eu e a quem muito devo do bom…e também um pouco do mau que tenho passado ao longo da vida. Algo correu mal nalguma alteração determinada por prática, investigação, descuido ou puramente acidental, na sua técnica habitual. Acabo de ler, por exemplo, duas notícias quase contraditórias: a primeira, que uma doente recusou a alta que os Serviços de Oftalmologia do HSM pretendiam dar-lhe, por ter recuperado (?) a visão e a segunda, que um responsável afirmava que os pacientes iriam recuperá-la a largo prazo…
Não acredito em atentados terroristas deste género. Um «corajoso» que se esconde atrás de informações anónimas só merece credibilidade à justiça das hipóteses ou ao jornalismo das fontes secretas. A não ser que se trate da ETA ou dos Taliban…
A terminar, peço antecipadamente desculpa, se errei nas minhas conclusões antecipadas e se algum dia vier a ser encontrado o verdadeiro criminoso.
Como ser humano, posso pensar e errar. Mas ninguém me convence a ser ceguinho à força. E cegueta, muito menos.

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